sexta-feira, 10 de agosto de 2012

MEMÓRIAS DA ADOLESCÊNCIA: O ALEMÃO DA SILÉSIA


Ao cair da tarde, depois de vir da praia e ter lanchado, tinha por hábito entabular conversa com os estrangeiros que cercavam o meu local de férias, gostava de ouvir as suas histórias e acabava por jantar com eles. Os mais acessiveis eram os ingleses, particularmentemente os mais idosos, porque adoravam relatar o seu trajecto pelo mundo, eram generosos no meio do seu orgulho e sempre me presenteavam com algum souvenir, apesar de comedidos e da sua cozinha ser uma lástima. Ingleses, franceses e alemães constituiam o grosso daqueles que nos visitivam, muito embora houvessem alguns espanhóis. As senhoras eram todas tratadas por madames e os homens como messrs. Pouco a pouco, fui aprendendo a identificar a nacionalidade dos proprietários das casas pelo odor e raramente falhava. Graças à minha curiosidade juvenil e à ânsia de aprender, tornei-me popular entre eles e acompanhava-os para todo o lado
Contrariamente aos outros estrangeiros que viviam na minha rua, nada interessados em disfarçar a sua riqueza e pretensa superioridade, massificada pela extravagância, número de criados e pela qualidade dos seus automóveis, havia um “cámone” que vivia sózinho numa pequena casa alugada, já idoso, pouco dado a conversas e que à noitinha saía para passear o seu pastor alemão, sempre à mesma hora e com um garbo nunca visto. Pouco ou nada se sabia acerca dele, uns diziam que era polaco e outros que era alemão. Intrigado com aquela personagem, decidi aproximar-me do homem e correr o risco de vir a ser escorraçado, porque olhava para as pessoas de soslaio e falava o mínimo indispensável, como se não tivesse tempo a perder ou os outros nada tivessem para lhe dizer. O cão comportava-se do mesmo modo e era tão evasivo quanto o dono, chamava Boris, era preto-afogueado e tinha cinco anos de idade.
A abordagem não foi fácil e obrigou-me a umas quantas tentativas (demorei um mês para conseguir falar com o homem), porque ele era perito em esgueirar-se e nunca desacelerava o passo, fixava os olhos no horizonte e dali raramente os tirava. Não tendo outro remédio, vali-me da cadela de uma vizinha, a Gipsy, uma rafeira malhada e decidi-me a passeá-la à mesma hora, ainda que fosse a reboque e com a cadela contrariada. O caricato da situação suscitou do estrangeiro os seus bons ofícios e foi assim que começámos a falar. Afinal o homem havia nascido na Silésia, no seio duma família alemã e detestava  que o tratassem por polaco, abominava a Polónia e o seu regime de então, sentia-se alemão apesar de ser pobre, esquecido e menos badalado. Ao olhar para o crucifixo que eu trazia ao pescoço, disse-me um dia à guisa de sentença: “ Você vai à Igreja? Acredita no Céu e no Inferno? Pois fique sabendo uma coisa, um e outro estão cheios de pastores alemães, num estão os bons e no outro estão os maus, mas no purgatório ficarão para sempre os outros cães que não conseguiram ser tão bons quanto eles”. O homem chamava-se Manfred Klose, se a memória não me atraiçoa, pertenceu à Wehrmacht, sofreu horrores com o avanço do Exército Vermelho e finalmente conseguiu chegar a Portugal. Morreu três meses depois do Boris e foi sepultado aqui em campa rasa, sem pompa, pranto ou alarde, acabando por morrer como viveu. Lembro-me sempre dele quando vejo pastores alemães sem préstimo ou desperdiçados. A memória tem destas coisas!

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