Ao cair
da tarde, depois de vir da praia e ter lanchado, tinha por hábito entabular
conversa com os estrangeiros que cercavam o meu local de férias, gostava de
ouvir as suas histórias e acabava por jantar com eles. Os mais acessiveis eram
os ingleses, particularmentemente os mais idosos, porque adoravam relatar o seu
trajecto pelo mundo, eram generosos no meio do seu orgulho e sempre me
presenteavam com algum souvenir,
apesar de comedidos e da sua cozinha ser uma lástima. Ingleses, franceses e
alemães constituiam o grosso daqueles que nos visitivam, muito embora houvessem
alguns espanhóis. As senhoras eram todas tratadas por madames e os homens como messrs.
Pouco a pouco, fui aprendendo a identificar a nacionalidade dos proprietários
das casas pelo odor e raramente falhava. Graças à minha curiosidade juvenil e à
ânsia de aprender, tornei-me popular entre eles e acompanhava-os para todo o
lado
Contrariamente aos outros estrangeiros
que viviam na minha rua, nada interessados em disfarçar a sua riqueza e
pretensa superioridade, massificada pela extravagância, número de criados e
pela qualidade dos seus automóveis, havia um “cámone” que vivia sózinho numa pequena casa alugada, já idoso,
pouco dado a conversas e que à noitinha saía para passear o seu pastor alemão,
sempre à mesma hora e com um garbo nunca visto. Pouco ou nada se sabia acerca
dele, uns diziam que era polaco e outros que era alemão. Intrigado com aquela
personagem, decidi aproximar-me do homem e correr o risco de vir a ser
escorraçado, porque olhava para as pessoas de soslaio e falava o mínimo
indispensável, como se não tivesse tempo a perder ou os outros nada tivessem
para lhe dizer. O cão comportava-se do mesmo modo e era tão evasivo quanto o
dono, chamava Boris, era preto-afogueado e tinha cinco anos de idade.
A abordagem não foi fácil e obrigou-me
a umas quantas tentativas (demorei um mês para conseguir falar com o homem),
porque ele era perito em esgueirar-se e nunca desacelerava o passo, fixava os
olhos no horizonte e dali raramente os tirava. Não tendo outro remédio, vali-me
da cadela de uma vizinha, a Gipsy, uma rafeira malhada e decidi-me a passeá-la
à mesma hora, ainda que fosse a reboque e com a cadela contrariada. O caricato
da situação suscitou do estrangeiro os seus bons ofícios e foi assim que
começámos a falar. Afinal o homem havia nascido na Silésia, no seio duma
família alemã e detestava que o
tratassem por polaco, abominava a Polónia e o seu regime de então, sentia-se
alemão apesar de ser pobre, esquecido e
menos badalado. Ao olhar para o crucifixo que eu trazia ao pescoço, disse-me um
dia à guisa de sentença: “ Você vai à Igreja? Acredita no Céu e no Inferno?
Pois fique sabendo uma coisa, um e outro estão cheios de pastores alemães, num
estão os bons e no outro estão os maus, mas no purgatório ficarão para sempre
os outros cães que não conseguiram ser tão bons quanto eles”. O homem chamava-se
Manfred Klose, se a memória não me atraiçoa, pertenceu à Wehrmacht, sofreu
horrores com o avanço do Exército Vermelho e finalmente conseguiu chegar a
Portugal. Morreu três meses depois do Boris e foi sepultado aqui em campa rasa, sem pompa, pranto ou alarde,
acabando por morrer como viveu. Lembro-me sempre dele quando vejo pastores
alemães sem préstimo ou desperdiçados. A memória tem destas coisas!
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