segunda-feira, 22 de agosto de 2011

UM VÍDEO “ENCANTADOR” SOBRE A TERAPIA DO BARRIL




Tudo o que seja inovação em matéria de adestramento interessa-nos, desde que sejam salvaguardados tanto o bem-estar quanto o superior aproveitamento dos cães, porque sem o contributo da erudição o progresso nesta arte sairia seriamente comprometido, coisa que não desejamos face à necessidade de um melhor entendimento interespécies. Não temos como hábito comentar o trabalho de outros, ainda que ocasionalmente possamos questionar alguns métodos ou conteúdos de ensino. Ao invés, e várias vezes o fizemos, temos enaltecido o contributo de muitos para o nosso êxito educacional. Perante a insistência de alguns amigos e alunos, excepcionalmente, vamos aqui comentar o vídeo http://www.youtube.com/watch?hl=pt&v=zgjcIaVwYYs, relativo a um caso terapêutico do Sr. César Millan, tido como “encantador” de cães e hoje muito na berra, um mexicano bem sucedido em Terras do Tio Sam. Antes da análise propriamente dita e para facilitar a compreensão objectiva de todos, sintetizaremos a história e o caso do CPA Garrett, propriedade dos Sr.s Sheila Malavasi e Joel Cohen, um cão com o mau hábito de perseguir incessantemente a sua própria cauda. Segundo o que nos é feito saber no vídeo, tanto pela narração quanto pelas imagens, o citado cão foi adquirido para fazer companhia a uma CPA (Keela), na altura com seis meses de idade. Talvez o facto do vídeo se encontrar dobrado em português do Brasil possa conter algumas paráfrases ou inexactidões face à tradução operada do inglês para essa variante da língua portuguesa, solução que nos desagrada e à qual somos alheios, considerando o habitual rigor das nossas observações. Parece que o Garrett chegou ao novo lar já com o problema e que com o passar do tempo agravou-o, rodopiando ainda mais sobre a sua cauda e chegando inclusive a mordê-la. É curioso reparar que esse rodopiar acontecia maioritariamente no sentido dos ponteiros do relógio e não no sentido inverso, o que em si é revelador e indicia um grave estado de ansiedade, já que os cães normalmente, para se descontraírem e disso obterem benefício, descrevem círculos contrários ao movimento da terra para satisfazerem as suas necessidades fisiológicas. Perante o problema houve quem aconselhasse a amputação da cauda e um clínico inclinou-se para um problema na coluna. Como a dona do animal não o queria ver amputado (porque o considerava como um filho) e o tratamento sugerido não alcançou os resultados esperados, entra em cena o “encantador” que ao jeito de Xamã apresenta os seus bons ofícios (com um dos pés em cima do sofá).

Pela inquirição do “encantador” ficamos a saber que o Garrett foi objecto dum adestramento inconclusivo, de uma cirurgia ineficaz e sujeito ao Prozac, que ao momento apenas saía duas vezes por semana e que no passado chegou a sair todos os dias em excursões de 3 a 4 km, sem contudo ter alcançado o “junto” alguma vez. Com o tacto que a situação exigia e perante o desespero dos donos, cuja responsabilização em nada ajudaria, o terapeuta começa por enaltecer a excelência das qualidades laborais dos pastores alemães, da sua necessidade de trabalho, da importância da excursão diária e da necessidade que têm das rotinas, verdades que aceitamos e confessamos em género, grau e número. Quase como um mágico a tirar um coelho da cartola, o “encantador saca de uma mochila e coloca-a sobre o dorso do Garrett, dispondo-se depois a passeá-lo com esse apetrecho carregado de algumas garrafas de águas vazias em ambos os flancos. A saída para o exterior aconteceu à “arreata” (com os dois cães em paralelo e do mesmo lado), com a cadela entre o terapeuta e o Garrett, manobra que só por si impedia o cão de rodopiar, uma vez que a cadela se constituía em muro e o atraso do cão era veementemente solicitado, quer pela linguagem verbal quer pela indução da trela. A somar a isto importa reparar no tipo de estrangulador utilizado, acessório omisso de qualquer plano de pormenor, mas que contribuiu para o alcance quase instantâneo do “junto”, o que é caso para se dizer: “ novidades só no Continente!”

Liberto do peso da liderança e da coerção da trela, o cão volta a rodopiar quando em liberdade e dentro do quintal dos seus donos, como sempre fez e não evidenciando qualquer melhoria. Aí o terapeuta interrompe-lhe as acções chamando-o para si (“aqui”). Depois decide-se por aumentar o peso das garrafas e de estipular um horário diário para o uso da mochila, para que passe a rotina e contribua assim para a supressão do problema. Não sabemos se o Garrett chegou a ultrapassar a tara, porque só nos é adiantada a receita e em momento algum se vê a cura do paciente. Julgamos possível ter acontecido e já diremos porquê. O que não podemos deixar passar em branco é a interpretação dada à mímica das orelhas do cão, na terceira posição e entendida como de contentamento, porque ela desnuda idêntico estado de ansiedade e descontentamento, não o prazer do Garrett em se transformar em cão de tiro (aquando do transporte da mochila), mas sim uma manifestação inequívoca da sua submissão diante duma indução forçada (coerciva). Estamos em crer que tal interpretação não resultou da ignorância, mas da tentativa conseguida para sossegar os proprietários do animal, face à sua sensibilidade e ao desconforto do cão. Como diz o povo: “quem não sabe ser caixeiro, fecha a loja!”

Pela nossa observação e já nos passaram pelas mãos milhares de cães, o desvio de comportamento visível no Garrett, indubitavelmente associado à ansiedade, é mais comum entre os cães submissos, assenta sobre determinados indivíduos e pode ter uma origem genética, predisposição que poderá ser agravada pelo viver social dos indivíduos e pelo particular da sua instalação. Os cães à revelia confinados a exíguos espaços, normalmente acorrentados e sujeitos ao isolamento a maior parte dos seus dias, podem abraçar este desvio desde que biologicamente mais propensos ao stress. Quando a Sr.ª Sheila Malavasi fala do episódio em que o Garrett ao morder a cauda se feriu, o animal encontrava-se encerrado na garagem e é visível uma corrente no chão desse anexo, o que facilitou a transição da perseguição para a tentativa de amputação da cauda. Quando dois cães se encontram numa moradia e ambos tentam ladrar aos seus portões, com o decorrer do tempo, o mais valente irá inibir o outro e impedi-lo de fazer o mesmo, o que poderá induzir o segundo à aquisição dessa tara pela imposição. Dificilmente as razões ambientais despoletarão a tara se não houver uma predisposição genética que se aposse delas, a menos que a violência exercida seja de tal monta que arrebente qualquer valente.
E porque inúmeras vezes já resolvemos este problema sem recorrer à técnica do barril, porque é isso que a mochila está a reproduzir, impedindo o cão de se dobrar sobre si, uma solução engenhosa que espanta pela originalidade e não esconde a coerção, adiantamos que o adestramento convencional pode solucionar o problema pela constituição binomial, enquanto meio para estabelecer a liderança, alcançar a cumplicidade, equilibrar os cães e dotá-los da necessária uma autonomia condicionada, benefícios inatingíveis sem a disponibilidade física e anímica dos donos, que apostados no bem-estar dos seus animais tudo farão para que se sintam felizes, dando assim combate à ansiedade, ao stress e à inquietação presentes nos cães actuais, também eles vítimas dos desequilíbrios do nosso quotidiano individual e social. Por causa deste e de outros problemas de igual monta optámos pelo método da precocidade, tentando dessa forma equilibrar aqueles que outros desequilibraram, mercê de más selecções ou de comportamentos impróprios e indignos para os cães. Fazendo jus ao que atrás dissemos, continuamos a defender a boa instalação doméstica, a excursão diária e o adestramento de todos os cães, independentemente do seu grupo somático, carga instintiva, propensão laboral, raça, idade ou sexo.

De volta ao vídeo, pareceu-nos exagerado o tipo de estrangulador utilizado e a impropriedade da mochila colocada no Garrett, já que esses acessórios são por demais agressivos, sendo inclusive lesivos para cães deste tipo : submissos e de linha do dorso recta, a menos que se procure a cura por um trauma maior e se aposte no selamento como a melhor das terapias ortopédicas. Somos conhecedores da transferência física e anímica dos donos para os cães, reconhecemos a importância da liderança, estamos cientes dos benefícios da “condução à arreata”, sabemos da necessidade das rotinas no adestramento e reconhecemos qual o real valor da excursão diária para o equilíbrio e bem-estar dos cães. Se os donos do Garrett cumpriram com as disposições do “encantador”, tudo leva a crer que foram bem sucedidos. No entanto, a terapia indicada é radical e abusiva dos direitos do animal, já que é despropositada e recai sobre um indivíduo anteriormente desprezado, desleixado ou descuidado. Quem não cumpre a sua parte sempre espera milagres, algum tipo de encanto ou de encantador, um anjo que lhe bata à porta e lhe resolva todos os problemas. Que ninguém se deixe embarrilar: os cães nasceram para a actividade e só a cumplicidade poderá produzir alteração e trabalho objectivo, a satisfação e o equilíbrio entre cães e homens. Mais vale trabalhar com o seu cão do que esperar por um Xamã, porque o apelo às divindades tem o seu preço e não deverão ser os cães a pagar a pagá-lo!

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