Desmond Morris, Granderath, Hagendorf, Jean-Henry Fabre, Konrad Lorenz e Trumler, por ordem alfabética e citando apenas alguns etólogos e entomologistas, muito contribuíram para a melhor compreensão dos cães e doutros animais, sendo percursores de uma nova ciência: a antrozoologia, vocacionada para o estudo das relações entre o homem e os restantes animais. Qualquer indivíduo mediano de inteligência e mal aviado de habilidades pode ensinar um ou mais cães desde que procure esse propósito, porque eles, ao fim e ao cabo como nós, entendem a linguagem da recompensa e do castigo, as manifestações de júbilo e desagrado e as emoções que as acompanham ou desnudam. A tarefa ser-lhe-á suavizada pelo uso da técnica advinda do condicionamento e pela extrema habituação presente no lobo doméstico, que tendo poucos instintos e sendo rico em “personalidade”, bem depressa se submeterá aos desejos de quem o sustenta e conduz. A grande revolução na etologia relativa aos cães, para além das suas duas maiores lições: que mais vale considerar o indivíduo do que o propósito da raça e que um cão pode ser ensinado em qualquer idade para qualquer fim, veio a acontecer pela questão: “O que fazer para que o meu cão me entenda?”. Esta dúvida teve o mérito de alterar e inovar os métodos de treino canino até então, realçando de imediato a responsabilidade humana no sucesso ou insucesso do adestramento, apesar de há muito se saber do domínio natural do inteligente sobre o irracional. Contudo, a pergunta pressupõe apenas a comunicação unilateral do homem para o cão, omitindo a comunicação possível do animal para o seu líder e protector, como se tal fosse irrelevante ou o especicismo fosse a melhor das políticas. A pergunta revolucionária e inovadora deveria ter sido complementada por uma outra: “ O que fazer para entender o meu cão?”, já que os cães têm diferentes vozes e expressões mímicas que evidenciam distintos estados de ânimo, hoje entendidos tardiamente como sentimentos.
Se ao adestramento for exigível um dom, ele resultará certamente da resposta às duas questões: da capacidade de compreender e se fazer compreender. Um nosso aluno de tempos idos, natural do lugar da Ordasqueira, Freguesia de Matacães e Concelho de Torres Vedras, homem simples e parco em palavras, quando questionado acerca da diferença gradativa dos mestres cinotécnicos perante a mesma técnica, costumava responder que ela resultava da “estaleca” individual, subentendo-se o termo por um conjunto de predicados únicos e apenas presentes nalguns indivíduos. Ao que parece, estamos na era dos “encantadores” tanto de cães como de cavalos, exaltando-se a saga de um humilde mexicano por terras gringas, um notabilíssimo adestrador que apresenta solução para tudo, inesperadamente e num ápice, e sobre o qual muito se tem escrito (ele mesmo virou escritor). Depois de lermos e relermos o que publicou, assim como os relatos dos seus êxitos, leituras que recomendamos para que se faça luz e se confirme a justeza da nossa opinião, chega-se à conclusão que nada trouxe de novo, que a chave do seu sucesso resultou do apego aos procedimentos correctos sobre a confusão operativa dos proprietários caninos norte-americanos, gordos em antropomorfismos e carenciados como sempre de um manual de instruções.
Os actuais métodos de treino canino não são os ideais, mas são até ao momento os que melhor servem o adestramento, face ao bem-estar dos cães e ao necessário aproveitamento dos seus impulsos herdados para o alcance das respostas artificiais procuradas no treino, o que não significa que os métodos menos recentes estivessem completamente errados e não possam pontualmente ser aplicados ainda hoje, atendendo às diferenças entre cães, ao seu particular instalador e à sua experiência directa, características advindas da sua selecção, perfil psicológico, lições de vida e viver social. O que o passado não dispensou, o presente reclama e o futuro aperfeiçoará é a autêntica comunicação interespécies, baseada no entendimento mútuo entre homens e cães que possibilita a aplicação dos estímulos certos para as acções requeridas, algo que ultrapassa os métodos, estabelece a diferença e que está para além da comum técnica, graças à intimidade presente em cada binómio por força da cumplicidade. E para que não restem dúvidas, importa fazer saber que a generalização de qualquer método acontece pela sua simplicidade, busca a mediania e granjeia por isso muitos adeptos.
A genialidade no adestramento, vulgarmente entendida como um dom nalguns indivíduos, resulta da fusão psicológica entre homens e cães que garante a sua unidade e acontece quando o cão certo vai parar às mãos do homem certo, uma responsabilidade tanto de criadores como de adestradores. A qualidade dum adestrador virá da capacidade de interpretar os diferentes cães e de encontrar para cada um deles os estímulos certos, as suas tendências e potencial individuais, suprimindo incapacidades e descobrindo mais-valias, mesmo que para isso se veja obrigado a alterar o comportamento de alguns condutores, também eles alunos e primeiros agentes de ensino, enquanto líderes, codificadores e emissores da mensagem. O dito dom para o adestramento vem do impulso ao conhecimento individual aqui transformado em vocação, da capacidade de interpretação e de se fazer compreender, de um novo relacionamento entre homens e cães.
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