Num país onde a maior parte da
juventude não tem qualquer contacto com animais, exceptuando o havido com os do
Jardim Zoológico que se encontram por detrás das grades e em exposição ao público, o papão do bicho-cão
cresce assustadoramente e toda a gente jura ter-se cruzado com um cão
potencialmente perigoso pelo menos uma vez na vida. Apesar da psicologia aqui
ter chegado tarde e a etologia ser para muitos desconhecida, o populacho julga-se
agora “entendido” em cães e não se inibe na formação de pareceres, movido pelo
cagaço que leva à confusão entre o indivíduo e a sua raça, segundo a ignorância
de quem tudo sabe e de acordo com as manchetes que lhe bombardeiam os ouvidos. Chegou
a vez do Dogue Argentino, porque, ao que parece, já causou duas vítimas
mortais. Quem será o freguês que se segue?
O grande boom do Dogue Argentino, que entre nós não foi assim tão grande,
iniciou-se no final da década de 80 via Espanha, depois da adesão de Portugal à
CEE e a raça começou por ser recrutada para a guarda convencional, uma vez que
vinha acompanhada de uma fama que nunca lhe sobrou em proveito e que a fazia
devoradora de pumas. Sobraram desse tempo uns tantos vídeos de má qualidade,
que pela sua natureza sanguinária, foram e continuam impróprios para os serões
familiares. O desaproveitamento massivo da raça na guarda convencional,
motivado pelo seu pouco interesse na disciplina, pela constante confusão na
troca de alvos, precária resistência às invernias, pouca predisposição laboral,
problemas articulares e inadequada máquina sensorial (ainda sobrevivem na raça
muitos exemplares surdos), reencaminhou o “porco branco”, nome como ficou
conhecido na gíria em analogia ao Rottweiler, para o seu lugar de eleição: as
matilhas de caça grossa, acontecendo com isso o seu desbarato e banalização.
Assim como não se pode esconder que alguns Dogues Argentinos se vieram a constituir
em bons guardiões, também não se deve omitir a escassez do seu número, enquanto
cães matilheiros, afáveis de trato e de fácil coabitação, qualidades
desconsideradas por aqueles que os desconhecem
e que agora ao condenam.
Nestas coisas dos cães, como em tantas
outras áreas, mais vale cair em graça do que ser engraçado, muito embora a
situação vire desgraça para qualquer proprietário canino que se faça acompanhar
pelo seu cão, em particular se for grande e pouco visto, porque sem grande
dificuldade poderão ser entendidos como uma ameaça pública, plebe a evitar e
companhia nada recomendável. Recentemente, debaixo do medo instalado, num
jardim público, uma pequena cachorra de 12 kg e 5 meses de idade, sem raça
defenida, no intuito de brincar, empoleirou-se num miúdo de 13 anos, obeso e a
rondar os 100 kg, que se encontrava a jogar à bola (a guarda-redes) com o pai.
Da brincadeira resultaram exíguas marcas das patas no animal nas pernas do
rapaz, “insólito” que deu azo ao seguinte protesto do seu papá: “ Veja
lá se prende a cadela, ela é perigosa e a prova disso encontra-se nas pernas do
meu filho. Ele não está aqui para ser ferido!” Decididamente, perante a
escassez de espécies cinegéticas, e de uma vez por todas, abriu a caça ao cão!
Urge reatar o salutar convívio com os cães, fazer saber aos homens porque razão
é o cão considerado o seu melhor amigo.
Sosseguem
as mentes inquietas e os corações atribulados que do Dogue Argentino não virá
grande mal ao mundo. Lamentavelmente, o mesmo não se poderá dizer de todos os
donos, tanto dos proprietários dessa raça como das outras, que de forma
intencional ou não, pela irresponsabilidade, projectam o disparate e põem a
cabeça dos cães a prémio. No nosso entender, todos os cães deveriam ser
treinados e não somente os que se portam mal, porque a ausência da prática do
bem já é mal que a todos basta. E depois, pior do que qualquer raça canina e
muito mais mortífera do que qualquer uma delas, tem sido a actual crise que
teima em se ir embora, responsável por uns tantos suicídios, pela destruição de
muitas famílias e pela diminuição da taxa de natalidade. O País precipita-se
para a cova e nós a correr atrás dos cães!