quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

DESILUDES-ME DE DIA E FASCINAS-ME À NOITE

NOTA INTRODUTÓRIA: O artigo que se segue é demasiado maçador para quem tem pressa.
A esmagadora maioria dos homens não consegue realizar os seus sonhos, idêntico percentual de cães não consegue ser feliz, alguns homens socorrem-se dos cães para aliviar o seu desalento e estes contentam-se com o que têm mesmo que sejam infelizes, ambos vivem para o presente, os primeiros porque deixaram de acreditar no futuro e os últimos porque não o alcançam, condições que transformam o infortúnio humano no pior dos flagelos caninos, graças à dependência que tudo aceita. Resultará a procura dos cães do livre arbítrio humano ou serão eles a panaceia para um mal recidivo e incurável? Se os homens não se bastam como poderão valer aos cães? De qualquer modo, se os homens quiserem, os cães poderão ser felizes, porque têm como divindade quem os criou para o seu serviço, agarrando-se aos seus donos como se de deuses se tratassem. Nós acreditamos nisso, apesar de não ser fácil pôr um cego a guiar outro ou servir-nos dum derrotado como exemplo para um vencedor. Vamos a um hipotético binómio do qual se poderá dizer que “junta a fome à vontade de comer”.
Comecemos pelo dono e condutor do cão, um homem simpático e educado; de formação superior; a uma dezena de anos da andropausa; divorciado; a viver em casa dos pais; a coabitar com o pai reformado e atormentado pela depressão da 3ª idade; obeso; em má forma física; outrora enredado pelo alcoolismo; com baixa médica sensivelmente há doze meses; a quem foi diagnosticado uma depressão grave (ainda em tratamento); que não dispensa a psicoterapia e os psicofármacos, “esgotamento” evidenciado pelos seguintes sintomas:
Humor depressivo durante a maior parte das horas diárias; choro esporádico e sem razão aparente; cefaleias; diminuição do interesse e do prazer em quase todas as actividades; distanciamento dos amigos de longa data; vontade excessiva para comer; alterações intestinais; insónia; lentidão psicomotora; fadiga e perca de energia; diminuição do interesse sexual; sentimentos de desvalorização; ausência de preocupação com a sua própria imagem; culpa excessiva e inadequada; alterações de pensamento, concentração e memória; dificuldade em ler e assimilar novos conteúdos; indecisões constantes e sem razão de ser; aceitação de comportamentos abusivos para não causar atritos; pensamentos mórbidos (dizia-se importunado por vozes) e tentativa de suicídio.
Voltemo-nos agora para o cachorro e para as suas principais características. Trata-se de um animal de índole submissa; descendente em parte de exemplares de exposição; sujeito a um mau imprinting e desmame; atento; já sexualmente maduro; leve, energético e de propensão atlética; com fraco impulso ao alimento e superior impulso ao conhecimento; com uma curva de crescimento alongada; de fácil sociabilização; interactivo; afável; curioso; disponível para a novidade de desafios; que se mostra decidido à noite e temeroso de dia, escapando-se com a cauda por entre as pernas quando o tentam afagar até que o sol se ponha (daí o título deste artigo). E porque os cães não são só produto da genética e são em grande parte reflexo do ambiente que os rodeia, sendo por vezes difícil identificar-lhes se determinados comportamentos são de origem genética ou ambiental, por serem animais sociais, vamos descrever agora quando foi adoptado, com quem coabita, em que condições se encontra alojado e quais as rotinas diárias a que se sujeita.
O ainda cachorro foi adoptado aos 3 meses de idade, resgatado dum canil por uma família constituída por um casal de septuagenários e pelo seu filho, que já tinham dentro do apartamento outro cão, animal que não lhe causou entraves nem oposição mas que em simultâneo não lhe serviu de mestre, possivelmente por ser de menor tamanho e ser objecto de tratamento antropomórfico, apesar de vivo, guloso, ciumento e ardiloso. A coabitação do cão e a sua interacção com os três residentes humanos tem acontecido de três modos díspares: com a anuência de um, a tolerância doutro e com a cumplicidade possível do seu dono, condições que levam o considerar aquele lar como seu território, onde se sente à vontade e perfeitamente integrado. No que concerne ao peso ambiental resta dizer que o animal frequenta classes de adestramento nocturno.
Como contributo para o duplo tema aqui tratado, que abraça a precariedade da liderança e os seus reflexos negativos nos cães, adianta-se que pesquisadores austríacos, da Universidade de Viena, publicaram recentemente os resultados de um estudo feito com 100 cães e seus proprietários, onde comprovaram que ambos influenciam directamente na disposição duns e doutros (díades sociais), que essa influência é maior dos homens para os cães que o contrário, que os cães são sensíveis aos estados emocionais dos donos, podem reflectir as suas emoções e que ao apoderarem-se delas por ajustamento, podem espelhar idêntico comportamento. Agora, de uma vez por todas, não podemos falar só de zoonoses, somos também obrigados a falar das doenças que causamos aos cães, nomeadamente as passíveis de alterar do seu comportamento e comprometer o seu bem-estar, onde o stresse ocupa um importante lugar enquanto afecção e modo dissimulado de crueldade.
De acordo com o caso hipotético que aqui tratamos, facilmente se antevê que estamos perante um binómio desajustado, que os dois elementos que o constituem são problemáticos, que os problemas vividos pelo dono acabem por reflectir-se no cão, independentemente das menos valias do animal. E se isto é verdade (tudo nos leva a crer que sim), então a solução dos problemas do dono acabará também por solucionar os visíveis no cão, que sem ter idade e treino para isso, outra coisa não tem sido que um animal de terapia, um terapeuta de valor inestimável que insiste em devolver o seu dono à vida e à felicidade que ambos não dispensam.
Dissemos dois parágrafos atrás que o cão frequenta classes de adestramento mas não dissemos que o seu dono está a educá-lo debaixo da supervisão de um adestrador, personagem de suma importância para a recuperação de ambos, porque dependendo da pedagogia que emprega, tanto poderá auxiliar como agravar os problemas daquele binómio, ainda hoje de costas viradas e carenciado de reconciliação. Diante desta situação não sobrará outra opção ao cinotécnico do que ajudar na recuperação do dono para que este venha a valer ao cachorro, caso que irá exigir raro tacto como iremos ver a seguir.
Com o dono emocionalmente abatido, indeciso, com ausência de amor-próprio, desmotivado e pouco interessado, acossado pela lentidão psicomotora e pela fadiga, com dificuldades na apreensão de novos conteúdos de ensino e a assumir culpas alheias para não causar atritos, apelar à disciplina e exigir rigor são pressupostos de ensino contraproducentes que mais agravariam o seu estado. Ao invés, há que suscitar-lhe a afeição pelo animal para que a cumplicidade dela resultante opere a melhoria de ambos, através de exercícios ao alcance do cão que aumentem a confiança e o bem-estar do dono, levando-o depois disso à aquisição das rotinas necessárias à sua reinserção social por conta da experiência feliz havida.
Perguntar-se-á depois: Então e o cão? Propositadamente escolhemos um cão serôdio para este binómio, com uma curva de crescimento maior e mais lenta, já a pensar nas possíveis delongas que a recuperação do seu dono possa apresentar, bem como na felicidade do animal. Convém dizer que perante indivíduos afectados por depressões graves, para além do pormenor da curva de crescimento do cão, este deverá ser submisso, meigo, com um alto coeficiente de aprendizagem, fácil de satisfazer, de alguma forma rústico e de fácil interacção. Compreende-se porquê – ele irá ser um terapeuta, um subsídio complementar e seguro para a recuperação do seu proprietário. Respeitadas as condições que atrás adiantámos, o cão irá ser feliz e trará felicidade ao seu dono, conseguirá aperceber-se dos seus estados de ânimo e de pronto correrá em seu auxílio quando tal se justificar, convidando-o para o abandono da letargia e desafiando-o para a interacção.
Por mais fraco que seja um cão, ele sempre fará das tripas coração para que o seu dono se robusteça e sinta bem. Quem educa quem? Não faltam casos em que os cães ensinaram os seus donos a apreciar os simples prazeres desta vida. Como é bom não estar só e usufruir da companhia de um cão, ter alguém que nos ajude a saltar da escuridão para a luz!     

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