sexta-feira, 27 de maio de 2011

NODUM NATUS ERAM (ainda eu não era nascido)

Ainda eu não era nascido, já os cães eram usados para atacar pessoas, aproveitados como militares, polícias e guardiões. Ainda antes de morrer, gostaria que eles se transformassem em mensageiros da paz, que ao invés de continuarem a saga do lobo mau, servissem para evitar a violência presente nos homens, contribuindo assim para eliminação patológica e contextual desse mal. Dificilmente verei este meu desejo cumprido, porque os homens nascem violentos e eu não escapo à regra. Será que não poderemos usar a nossa força, firmeza e energia no sentido inverso? Será a nossa relação com os cães interesseira? É evidente que podemos alterar a nossa perspectiva e abraçar outros ideais, abandonar velhas práticas e proceder doutro modo. Não há dúvidas quanto ao carácter interesseiro que norteia o nosso relacionamento com os cães, o que importa é transformar o seu uso, usá-los como terapia para congregar e não como meio para afastar os outros. É este o grande desafio que é colocado à cinotecnia no Sec.XXI.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

AVERSÃO, INDIFERENÇA, SIMPATIA, GOZO, NECESSIDADE, DEDICAÇÃO E ADORAÇÃO

Desnudaremos os 7 sentimentos que constituem o título e que correspondem às posturas mais comuns relativas aos cães, através da resposta e análise às seguintes questões: Como vêem os cães, que conselhos dão aos filhos, como procedem diante das dificuldades, o que pensam do adestramento e o que normalmente fazem com os animais. A identificação do sentimento que levou à aquisição do cão é tarefa obrigatória para todo e qualquer adestrador, porque desnuda de alguma forma o seu proprietário, as suas expectativas e o seu modus operandi, clarificando assim o tipo de abordagem a fazer, o método de trabalho a seguir e as ênfases a dar, no sentido de alterar, caso se justifique, a postura do dono, considerando a salvaguarda do animal e o interesse do seu proprietário pelo processo pedagógico. Se não existir qualquer tipo de afinidade ou simpatia entre os proprietários caninos e o adestrador, é quase impossível que a relação entre ambos seja profícua e as observações do técnico venham a ser seguidas. A relação entre o Adestrador e os condutores carece de ser empática, porque é baseada na confiança que leva à aprendizagem. Sem esta condição, o mais erudito dos adestradores poderá ficar a dissertar para as moscas, invalidando assim todo seu potencial e mais-valia. Sim, só conseguiremos educar cães se os donos nos acompanharem, de outro modo dificilmente nos confiarão os animais. Em síntese, conquista-se o dono para alcançar o cão. As pessoas que têm aversão a cães não perdem tempo com eles, naturalmente “querem é distância” e tendem a trocar de passeio quando connosco se cruzam. O sentimento poderá ser de origem cultural ou resultar dum trauma. Existem zonas no país onde as pessoas abominam os cães, porque os consideram um fardo ou por que os associam à miséria. A primeira consideração remete-nos para um histórico relativo à economia de sobrevivência e a segunda à nossa herança cultural judaico-cristã, onde o cão quase sempre aparece associado ao descalabro e ao castigo. Os traumas relativos aos cães, geralmente ocorridos durante a infância ou na puberdade dos indivíduos, apesar de serem ultrapassáveis, justificam a aversão de muitos, porque são feridas abertas que levam à alteração de comportamento, invariavelmente ligadas a ataques inusitados perpetrados por um ou mais cães. Independentemente das causas que levam à aversão dos indivíduos, eles vêem os cães como um perigo e transmitem o mesmo sentimento para os filhos, exaltando os prejuízos em detrimento das vantagens, proibido-lhes inclusive a posse de qualquer cão, pelo menos enquanto estiverem debaixo da sua alçada. Aqui reside um dos motivos que leva alguns à aquisição de cães somente na idade adulta. Muitos dos tolhidos pela aversão comportam-se de modo irascível, não escondem o seu asco, manifestam o seu desagrado e chegam a ser provocadores. Um pequeno número deles não hesitará em envenenar os cães alheios à sua volta ou a eliminá-los por outro meio igualmente cobarde, o que torna obrigatórias tanto a prevenção quanto a recusa de engodos no adestramento. Dependendo do perfil psicológico dos indivíduos, do seu índice de malícia e da projecção do seu engenho, sempre haverão uns que nunca nos dirigirão qualquer palavra ou cumprimento e outros que tentarão acercar-se de nós para alcançarem os seus nefastos intentos. Há que estar atento!
Aqueles que manifestam total indiferença pelos cães, desde que estes não os aborreçam, são um dos grupos maioritários presente na sociedade, sendo geralmente gente metropolitana apegada a outros interesses e valores, para quem os cães são puro folclore e resquício de uma cultura que teima em se ir embora (ultrapassada). Dentro do grupo dos indiferentes também encontramos gente oriunda do interior, indivíduos que abraçaram o viver urbano e que intentam a cada passo esquecer-se das suas origens. Tanto uns como outros, dificilmente ofertarão um cão aos filhos, porque não vêem nisso algum proveito, a menos que alguém lhes prove o contrário. Tendencialmente cativam-nos para outros interesses e ridicularizam os proprietários caninos. Também não hesitarão, perante a insistência dos filhos, em enfatizar os prejuízos e disparates atribuídos aos cães, presentes nos noticiários e merecedores de especial enfoque. Eventualmente terão cães se alcançarem uma quinta ou moradia e se os bichos lhe causarem algum incómodo, tanto poderão optar por os mandar ensinar, doar ou mandá-los abater. Se houver lugar ao adestramento do animal, ele surgirá exclusivamente por necessidade e nunca por apego ao cão ou àquilo que lhe é devido, porque vêem o treino como uma tarefa. Apesar desta gente procurar a coabitação harmoniosa do cão no lar e na sociedade, não se estafará muito para a alcançar. Perante a demora e as exigências no ensino não hesitarão em lançar o cão no olho da rua ou a enviá-lo para o espaço. Num casal, quando um dos cônjuges pertence à categoria dos indiferentes, o futuro do cão encontra-se comprometido, o seu viver social abalado e poderá vir a ser despachado, porque as dificuldades do indiferente levá-lo-ão a queixas intermináveis e insuportáveis. Quando dois indiferentes adquirem um cão (o caso apesar de sórdido não é raro e acontece por múltiplas razões), duas coisas podem acontecer: ou o cão é um anjo ou vai fazer as suas diabruras para o quinto dos infernos. Faz todo o sentido quando dizemos que o cão é projecto familiar. Ensinar os cães dos indiferentes é um acto que reclama por celeridade, porque doutro modo estaremos também nós a atentar contra a salvaguarda dos animais. A indiferença dos donos é muitas vezes responsável pela paixão que os cães nutrem pelos adestradores.
Não são poucos os que denotam especial simpatia pelos cães. Este sentimento pode provir duma feliz experiência anterior, de um sonho de infância ou de um apego inexplicável e incontido. Será do grupo dos simpáticos que sairá um pequeno número de pessoas que se dedicará a actividades em prol dos cães (recolha, adopção e sustento dos animais abandonados). Esta sensibilidade poderá constituir-se numa necessidade, revestir-se de especial dedicação e atingir a adoração, caminho geralmente sem regresso e que acabará por escravizar os indivíduos seus portadores e estender-se àqueles que aceitarem o seu desafio. Como o seu número é reduzido, a maioria das pessoas que simpatizam com os cães fazem-no porque os não têm e gostariam de os ter. Essa carência de reciprocidade, intimamente ligada à ausência de condições de vária ordem, irá levá-los à procura do contacto com os cães alheios, tratando-os como se fossem seus e não raramente à revelia dos donos, o que é um abuso insofismável, desafortunadamente enraizado entre nós. O simpático acaricia sem avisar, distrai os cães dos outros, tenta cativá-los, dá-lhes de comer e incentiva-os para outros desafios ou brincadeiras, muitas vezes inoportunas face à sobrevivência dos animais e ao cumprimento das ordens anteriormente manifesto, factos que ele ignora pelo sufoco apelativo. Quando não é bem sucedido e os cães reagem de modo inesperado, quer rejeitando a carícia quer advertindo para o abuso, bem depressa cai o vitupério e os seus proprietários, sem maior dificuldade, alcançam o nome de besta. Os simpáticos, talvez por serem apenas simpáticos, não estão para suportar os incómodos que os cães causam, servindo-se apenas dos alheios para a satisfação das suas necessidades, numa clara alusão a um amor quanto baste. Os seus filhos espelharão a mesma educação e todos verão o adestramento como desnecessário, provavelmente porque nada mais esperam dos cães e ignoram os perigos que os rodeiam – Deus nos salve dos bajuladores! Quando finalmente um simpático arranja um cão e se apresenta no treino, é porque encontrou problemas para além da sua capacidade de resolução. A situação exige tacto, porque a natureza dos problemas, só por si, não vai alterar tanto a essência quanto o comportamento do indivíduo. De que padecerá o cão do simpático? Provavelmente de abuso de autoridade, porque quem não consegue refrear-se, dificilmente saberá dar o exemplo, dizer não e abraçar a disciplina. Deseja-se que a sintonia com os restantes alunos escolares corra em nosso auxílio.
Existem alguns indivíduos que têm cães somente pelo gozo de os ter, gente que com alguma dificuldade se compromete com os animais. Para eles, na maioria novos-ricos à procura de melhor aceitação, os cães devem ser como as vacas: gordos e reluzentes. Contudo, eles não são perigosos para os seus semelhantes, porque querem os cães para reafirmar o seu status e não para causar dolo a ninguém, servindo-se deles como recepcionistas ou cartão de visita. Na procura da satisfação pessoal, outros há quem pensam e agem de modo diverso, dando azo a sentimentos recalcados ou desviados presentes na sua natureza predadora, que deliberadamente se servem dos cães para dar caça aos seus fantasmas sem outra justificação, porque entendem que a intimidação é o melhor dos caminhos para o poder. O primeiro grupo raramente nos procurará, a não ser que queira causar boa impressão e o segundo exigir-nos-á que ponhamos os cães a morder sobre tudo o que mexe, desejo que infelizmente não realizaremos. Porém, sem muito esforço, logo encontrarão que lhes satisfaça as ambições. Por detrás de sãos princípios doutrinários e a coberto de uma pretensa preocupação com os cães, sobrevivem no mundo da canicultura e do adestramento indivíduos que apenas se servem dos animais para atingirem os seus propósitos, porque o título de campeão é apetecível e também porque lhes dá “pica” (gozo), o que aponta claramente para o fim terapêutico canino e para os benefícios que a serotonina oferece. Entre os gozadores, na eventualidade de algum desarranjo ou contrariedade provocada pelo cão, bem depressa o desinteresse substituirá o gozo e animal acabará substituído, tal qual um carro velho ou outro tareco lá de casa. A capacitação de um hedonista, porque importa evitar o desprezo do cão, deve acontecer inicialmente pela exaltação das suas pequenas vitórias no treino e não dar lugar à denúncia ou à confrontação. É importante não esquecer que esta gente tem cães para aumentar a sua auto-estima e forçar a sua aceitação, pelo que importa tratá-la com a maior deferência possível. Os seus filhos dir-nos-ão amanhã: “ Eu fui criado no meio de cães, na casa dos pais sempre havia alguns, não sou propriamente um ignorante nesta matéria”.
Ter cães é uma necessidade para muita gente, algumas instituições não podem prescindir deles e outras ainda não entenderam a sua importância. A necessidade dos cães, intimamente ligada à natureza biológica e social dos indivíduos, prende-se com aspectos ligados ao seu equilíbrio emocional e bem-estar (terapia), ao aumento da autonomia de alguns (deficientes de vária ordem) à possibilidade de novos proventos e também ao retorno idílico à vida simples, campestre e mais saudável (contacto com a natureza). Não abordaremos o segmento dos cães para deficientes, porque disso falarão, com mais propriedade e conhecimento, os profissionais formados para esse efeito. Remeter-nos-emos em exclusivo à necessidade do cidadão comum, que ao contrário do que muita gente pensa, não é desprezível e tem-se revelado de extrema importância para o bem-estar dos indivíduos, suprimindo-lhes carências de vária ordem, relacionadas com o alcance do seu equilíbrio psicológico e com o combate à solidão e ao ostracismo, subsídios objectivos para a sua reintegração social. Todos sabemos do aproveitamento político do desporto e em Portugal um jogo de futebol pode até encurtar uma sessão no Parlamento. O quadro pode parecer-nos rocambolesco, mas as vitórias de um clube de futebol ou da nossa selecção podem alimentar a esperança ou desanuviar aqueles que mais sentem a crise, dando-lhes alento para suportar as dificuldades. Com os cães passa-se exactamente o mesmo, porque não nos abandonam, são nossos confidentes, aceitam-nos tal qual somos, fazem-nos sentir úteis, ajudam na construção do nosso pequeno mundo, são muito afectuosos, fazem da reciprocidade prática corrente, e por aí adiante. Diante deste cenário, não é difícil compreender a possível dialéctica antropomórfica de alguns, que reclamam para os seus cães características e qualidades quase humanas. O discurso não é livre porque em muitos casos a opção foi forçada. Quem tem acompanhado grande número de idosos e solitários? Feito as delícias das crianças e substituindo aquelas que já partiram? Ajudado os jovens a crescer e aliviado as dores de tantos? Quem está sempre ao nosso lado e tem acalentado muitos dos nossos sonhos? Tudo isto revela uma necessidade objectiva dos cães, quer eles surjam por complemento, substituição ou se tornem imprescindíveis. A plebe que precisa deles, como já atrás se disse, tende a tratá-los como iguais, o que nos obrigará a cuidados excepcionais no adestramento desses”cães-homens”, porque para os seus donos eles não são cães, cães são os dos outros! Sempre nos pedirão maior deferência, rara sensibilidade e não se acanharão em manifestar-se. Com certeza iremos ouvir histórias fantásticas, algumas semelhantes às ouvidas entre pescadores e caçadores ou outras relativas a dons paranormais (que eles juram estar presentes nos seus companheiros). Será deste grupo de carentes que sairá o grosso dos indivíduos para os lares de acolhimento e outras actividades relativas ao resgate dos cães abandonados. O indivíduo que não dispensa a companhia do seu cão, depois de confiar em nós, pode tornar-se num aluno modelo, porque através da cumplicidade manifesta poderá chegar à excelência binomial, opção mais equilibrada e que o levará a considerar objectivamente o particular biológico do seu cão. Também nós somos visionários e estamos cá para massificar os sonhos de muitos, porque ensinamos para alcançar a excelente comunicação interespécies e continuamos a acreditar que muitos lá chegarão.
A dedicação aos cães pode não provir duma necessidade ou ser resultado duma carência, porque muita gente abraça o ofício sem dar por isso e acaba por gostar da experiência, como se o tempo aguardasse pela circunstância. O que caracteriza a dedicação é a transformação das velhas rotinas em novos procedimentos, o gozo de descobrir e querer mais, a aposta no caminhar com o cão ao lado e procurar a sua coabitação sem contudo desrespeitar a sua natureza. A dedicação aumenta e depura-se com a experiência, obriga a adaptação de ambos e pode alcançar a comunicação telepática, benefícios que o treino canino oferece e pode despertar. Proliferam por aí ideias ou noções erradas acerca do adestramento, caricaturas que em nada se identificam com esta arte e que apenas servem para relembrar o passado, ilustrar certos propósitos ou ironizar quem os segue. O treino do cão de guerra já lá vai, o de polícia vai a caminho, o de guarda tira o bilhete e o de circo já embarcou. Sobra o cão familiar, e às suas custas o adestramento evoluiu para patamares nunca vistos, ganhou criatividade e descobriu outras disciplinas, devolveu os cães aos donos, generalizou-se por todo lado e constitui-se como parte integrante da cultura popular, saiu do troar dos tacões e abraçou a salvaguarda dos animais, tornando o treino canino numa manifestação incontestável de dedicação, graças à relação óptima entre tratamento e adestramento. Só a dedicação alcança o treino e o entende como uma tarefa prioritária, procura o discipulado e busca a simbiose. A transcendência operativa do adestramento reside no amor, na capacidade de cada condutor alcançar uma paternidade extraordinária e incomum, mercê da comunhão de objectivos que o une ao seu cão, não sendo por isso de estranhar que os bons pais venham a ser igualmente bons condutores. Quando essa dedicação se torna cultural, não é difícil compreender como 2 ou 3 gerações da mesma família se filie na mesma escola. Os portadores deste sentimento não esperam que os seus cães façam, ensinam-nos a fazer, são tolerantes e esperam pelas adaptações dos seus companheiros, sujeitam-se ao auto-exame antes de os repreender, são fortes no incentivo, constantes nas acções e dedicados ao aprimoramento. Só a dedicação poderá compreender que o ensino é um acto continuado, sujeito à novidade de desafios e carente de novas soluções. Todos os alunos escolares procedem assim? Não! Mas a Escola existe para os educar, amparar e transformar, e é essa a verdadeira causa da sua existência, já que os cães não aprendem sozinhos e necessitam de sobreviver.
Os cinófobos abominam os cães, os indiferentes dão-lhes pouca ou nenhuma importância, os simpáticos brincam com eles, os gozadores possuem-nos sem os compreender, os que necessitam deles usam-nos e saciam as suas faltas, os dedicados amam-nos, e o que farão os seus adoradores? Adorá-los-ão simplesmente! Como complemento e seguindo mesmo raciocínio, os cinófobos nem os querem ver, os indiferentes querem distância deles, os simpáticos buscam a sua proximidade, os gozadores querem-nos no sítio certo, os necessitados onde fazem falta, os dedicados trabalham para que permaneçam a seu lado e os adoradores arranjar-lhes-ão prerrogativas divinas e andarão de acordo com os seus amuos. E que mensagem transmitirão aos seus filhos? Os cinófobos transmitir-lhes-ão os mesmos medos, os indiferentes tentarão afastá-los dos cães, os simpáticos formarão bajuladores, os gozadores serão gozados pelos filhos, os necessitados isentá-los-ão de maior contacto com os animais, os dedicados tentarão transmitir-lhes igual sentimento e os adoradores, para mal dos seus pecados, raramente têm filhos. Diante de algum contratempo provocado pelos seus cães, os indiferentes livrar-se-ão deles, os simpáticos procurarão ajuda, os gozadores substitui-los-ão, os necessitados levá-los-ão para afinação, os dedicados buscarão solução e os adoradores conformar-se-ão com a sua sorte. Todos eles compreendem ou irão compreender o adestramento de maneira diferente. Para o cinófobo a cinotecnia é uma prática de tolinhos e uma manifestação de maldade, o indiferente vê-lo-á como desperdício de tempo e de dinheiro, o simpático não vislumbrará imediatamente da sua necessidade, o gozador raramente estará para aí virado, o necessitado cumprirá com os protocolos de ensino, o dedicado não o dispensará e o adorador desprezá-lo-á. Afinal, fazemos com os cães o mesmo que fazemos com tantas outras coisas, tudo resulta do nosso maior ou menor interesse e não tanto dos talentos individuais.
Queremos dedicar o último parágrafo deste texto aos adoradores de cães, figuras ímpares no panorama da canicultura, mas nem por isso muito vistos (diremos nós: Graças a Deus!). A figura do adorador de cães lembra uma papoila isolada no meio de um campo de trigo, porque se destaca dos restantes e evita ter com eles qualquer contacto, tal qual crente de seita secreta e proibida. É geralmente uma pessoa alheada, que se alheou ou que se viu forçada a isso, tendo apenas como alternativa viável a companhia de um ou mais cães. Quando é rico é tratado como extravagante e quando é pobre como lunático. Existem indivíduos destes em todos os extractos sociais, muito embora sejam melhor ou pior atendidos de acordo com a sua importância ou poder económico. Sem quase nenhuma dificuldade, o adorador de cães irá transformar-se no martírio dos veterinários e no suplício dos adestradores, porque os primeiros não terão como tratar as doenças do dono e não escaparão as arremetidas do bicho – um Deus que não quer ser importunado. Quando um adorador chega a uma escola ou centro de treino canino, ele vai coagido e para cumprir calendário, geralmente a rogo do veterinário assistente, que farto de aturar ambos, passa a “batata quente” (infelizmente temos nisto bastante experiência). É evidente que nunca alcançarão a constituição binomial, porque ela exige o domínio do inteligente sobre o irracional e ali os termos da fracção são manifestamente inversos. Na melhor das hipóteses, o adorador compreenderá o treino como um recreio ou uma ida a um jardim-escola (kindergarten), e aproveitará a ocasião para apresentar o seu príncipe alado aos outros meninos (muito educados mas manifestamente inferiores ao “Sol” da mamã). Dificilmente aceitará ali algum reparo ou sugestão, porque nos julga imbecis e impróprios, algo semelhantes a sapateiros de pouco préstimo, já que só ele compreende as necessidades, as aspirações e os humores do seu deus de quatro patas. Como quase tudo nos cães resulta da investidura e disso não querem ser destronados, nomeadamente das mordomias, o cão do adorador resistirá ao ensino e será dominado por um sentimento de revolta, pelo menos na presença do dono, que tudo agrava e compromete, o que nos obrigará à educação do animal na ausência do seu subordinado (a estratégia tem-se revelado eficaz e engordado os bolsos de muitos). A subordinação do dono (assumida, consentida e irreversível), que é muitas vezes usada como meio de provocação e prepotência, obstará à liderança que tudo poderia transformar. Ainda que a educação do cão seja possível, a recuperação do dono é algo que nos escapa. Caberá essa responsabilidade a outros, isto se vierem a ser consultados, porque o adorador acha-se certo e não reclamará por qualquer apoio. Neste caso, como em muitos outros, os problemas presentes nos cães encontram razão no descalabro presente na cabeça dos seus proprietários. Abordámos os sentimentos mais comuns relativos aos cães para que cada um se examine, compreenda como os trata e aquilo que lhes causa. Em simultâneo, avançámos alguns subsídios para aqueles que têm como ofício ensinar cães e que acabarão confrontados com as pessoas que lhes chegam.

sábado, 21 de maio de 2011

BINÓMIO: UMA TERAPIA SEGURA CONTRA A FERRUGEM

Apesar do “fenómeno” já ter sido desacreditado, ainda subsistem por aí umas tantas igrejas que oferecem milagres e cura para tudo, como se fossem donas da mais excelente das terapias alternativas. Com este texto não queremos ser confundidos com elas ou interpretados como vendedores de alguma panaceia, tão-somente testemunhar os benefícios que a terapia binomial tem oferecido aos nossos condutores seniores, lançando daqui o convite a todos aqueles que se encontram nessa idade e que não querem, imediatamente, entregar a sua vida aos pontos, porque é possível ser-se ancião e ter saúde. Move-nos a preocupação fraterna e não o aumento dos proventos, porque a maior fatia deste desafio recairá, indubitavelmente, sobre nós e disso estamos cientes, mercê da alteração dos métodos e estratégias a que nos veremos obrigados. Contudo, estamos cá para servir e nisso reside a nossa vocação.
Ao contrário de outros, vá lá saber-se porquê, a Acendura Brava sempre tem tido condutores seniores nas suas fileiras, gente que se tem sentido bem entre nós e que sempre acaba por nos surpreender. Nos últimos vinte anos o seu número foi de 10% na totalidade das inscrições e tem vindo a crescer nos últimos tempos. Talvez isso se deva ao facto de termos muitos reformados, ao cuidado generalizado com a saúde, às múltiplas acções de esclarecimento desenvolvidas nesse sentido e ao querer de alguns que abraçaram e abraçam esse propósito. No tempo em que mantínhamos classes de competição, conseguimos inclusive levar condutores seniores às provas e nenhum deles mal se comportou ou foi motivo de troça, muito pelo contrário! Corrijam-nos se estivermos errados, mas entendemos as escolas caninas como meios para congregar as pessoas e não somente os condutores ou proprietários caninos, porque a organização de qualquer evento sempre reclama por outra gente, vicissitudes que a logística não dispensa e é bom estarmos cientes disso. No mundo global a escola canina deve ser para todos e ajudar na trajectória comum, colocando ao seu dispor as suas mais-valias, independentemente do sexo, idade, raça, actividade, lugar social, credo ou religião das pessoas, porque somos portadores do bem que os cães nos oferecem e não podemos guardá-lo somente para um grupo de eleitos. E se assim não o fizermos, seremos ultrapassados e arrumados nas estantes reservadas aos horizontes da memória, tal qual dinossauros à espera de serem redescobertos. A escola canina deverá ser activa e acompanhar a erudição da modernidade, adaptar-se para os desafios contemporâneos e contribuir para o alcance das aspirações humanas do seu tempo.

Segundo a teoria oxidativa, que hoje não merece qualquer tipo de contestação, considerando também que o excesso de actividade em determinadas idades pode originar tumores, diante do envelhecimento biológico provocado pela respiração (porque cada vez que respiramos, pagamos um preço pela absorção de oxigénio que necessitamos para produzir energia), longe de oferecermos a longevidade, julgarmos ser a prática do adestramento a melhor das terapias para os indivíduos seniores, uma vez que solicita os movimentos naturais inerentes à sua autonomia física, sem contudo provocar grande desgaste ou induzir a maior envelhecimento. Entretanto, seria absurdo sustentarmos que a cinotecnia garante só por si a longevidade, sabendo que ela se encontra ligada, para além do legado genético dos indivíduos, a meios culturais como a nutrição, a medicina e a cirurgia e que tanto ela como a gerontologia, ainda precisam de grandes avanços para lá chegar. Como simples perreros que somos, apenas damos testemunho do que vimos e ouvimos da boca dos nossos condutores seniores. E é com base nisso que convidamos outros iguais a acompanhá-los no combate à ferrugem, para que a sua autonomia aumente sem maiores atropelos e alcancem melhor qualidade de vida. É evidente que não estamos à espera que atinjam os 7.8 km/h em marcha, que venham a acompanhar os seus cães a uma velocidade de 6 metros por segundo ou que suportem duras sessões de treino baseadas na sobrecarga, porque isso nos remeteria para a responsabilidade da morte assistida ou para a convicção duma vida vindoura incomparavelmente melhor. Não é esse o nosso ofício, não abraçamos a metafísica e lidamos apenas com vivos.

Como se depreende, a inscrição de alunos seniores vai obrigar a adaptações e à variedade de métodos consoante as características dos indivíduos, tanto na formação como na sua integração, forçará a alteração dos planos de aula e induzirá à criação de metas intermédias e à novidade de cronogramas, que poderão acontecer isolados ou por integração. Geralmente são convidados a participar nas aulas colectivas até ao período do trabalho específico, estratégia que dá ao grupo um arejamento maior e fá-los sentir parte integrante da classe escolar, pois é importante que todos se sintam bem, que uns não se sintam atraiçoados e outros um empecilho. Para além das vantagens para as partes, o grupo cresce coeso e em sabedoria, recriando no treino um ambiente familiar há muito arredado da sociedade contemporânea, fortemente individualizada e distante dos problemas alheios. Escusado será dizer que o sucesso da integração dependerá de quem dirige: a pessoa do adestrador, que deverá saber gerir o esforço colectivo para o bem-estar individual, sem proporcionar atrasos nos mais empenhados ou vocacionados. À partida a tarefa parece difícil, mas ela irá ser suavizada pela mestria de uns em prol dos outros e é nesta permuta que residirá a melhor solução. Ademais, acresce uma lição de vida: as escolas mais duradouras sobrevivem pela excelência colectiva e as fortemente individualizadas tendem a desaparecer subitamente. Todos são importantes. A que deverá dar mais peso um adestrador: às medalhas ou às pessoas? Dependendo da opção, assim terá mais ou menos gente ao seu lado.

É por demais abusivo e injusto considerar a integração dos seniores um sacrifício. Caso o haja, a sua maior fatia irá ser paga por eles, atendendo aos inevitáveis esforços de integração e de capacitação, a uma menor disponibilidade física e à maior dificuldade no atingir das metas. Todas as pessoas que nos procurem têm dificuldades ou procuram o nosso auxílio, de outro modo jamais nos procurariam ou teríamos conhecimento delas. Contrariando uma ideia generalizada e preconceituosa, importa dizer que os condutores seniores têm-nos colocado menos problemas e dificuldades que outros de grupos etários diferentes, apresentando muitas vezes maior capacidade de sacrifício, pontualidade e empenho, coerência nos objectivos e mais avidez de conhecimento. E como se isto não bastasse, na galeria dos condutores lendários da Acendura o seu número é maioritário, havendo alguns que inclusive se tornaram monitores desta escola.

Reafirmamos o convite aos seniores para as nossas fileiras, desafiamo-los para a constituição binomial, queremos que sejam donos dos seus próprios passos e apostamos na sua qualidade de vida, até porque eles têm muito para nos ensinar e sem eles a nossa família estaria incompleta, tal qual geração errante e sem parâmetros. O exercício do adestramento é uma prática para todas as idades e tende naturalmente a eliminar insuficiências ou supostas dificuldades. Há que dar combate ao sedentarismo, ao isolamento, ao desinteresse e à apatia, factores que muito contribuem para o envelhecimento precoce das gentes, pois só temos uma vida e importa que a vivamos intensamente. Educar cães é fazer-se presente, é dizer que ainda vale a pena, é procurar dias melhores para suportar os indesejáveis, é apostar na vida diante da certeza da morte, mesmo sabendo que o envelhecimento é um processo irreversível e que começa logo após a maturação reprodutiva, resultando da diminuição de energia disponível para manter a fidelidade molecular. Mais vale sair de casa do que esperar que dêem pela nossa falta e finalmente nos venham buscar, quando já nada nos importar e sobrar o carrego para os outros. À parte disto, o adestramento possibilita a inserção social dos idosos, reafirma a sua importância e promove-lhes novos interesses. E como ninguém gosta de estar só, arranjem um cão e sejam bem-vindos. Estamos à vossa espera e temos como ajudar-vos. O convite está feito.

OLÁ! EU SOU A CÉLIA.

Imaginem uma mulher casada, a trabalhar por conta própria, mãe de duas crianças, com uma casa enorme para cuidar e sujeita a um horário laboral por demais alargado, que se levanta cedo e chega tarde, que tem sempre o que fazer e que mesmo assim, ainda arranjou tempo para se dedicar à cinotecnia. Estamos a falar da Célia Oliveira Coito, a condutora do CPA Igor e aluna da nossa Escola, a mãe do Rodrigo que conduz o SRD Tarkan. Apesar da muita azáfama, para além de colocar a sua casa à disposição das classes e acabar por fazer o jantar para todos, facto que amiúde se repete, ela tem participado nas múltiplas actividades que mantemos no exterior. Esteve no nosso acampamento com a família às costas, onde mais uma vez saltou para a cozinha e acabou por ajudar na limpeza do recinto, como se já não bastasse o facto de ter que cuidar dos filhos. Também participou na nossa caminhada nocturna de 34 km (Cheleiros-Lisboa) e já alcançou com o Igor a Técnica de Condução. Vítima de um acidente de viação ocorrido à meia dúzia de anos, ela chegou à Escola com dificuldades locomotoras e acabou por ultrapassá-las, apesar de um dos seus joelhos se encontrar seriamente danificado. No princípio inchavam-lhe as pernas e as dores não a largavam, o que a obrigava muitas vezes ao descanso. Possuidora de uma rara força de vontade, tudo ultrapassou e tem-nos servido de exemplo, servindo inclusive como cartão de visita da escola e disponibilizando-se para ajudar quem chega. Esta mulher de trabalho, dentro da sua simplicidade e rara simpatia, não é portadora de grandes palavras ou de rara erudição, prefere estender a sua mão em ajuda e todos trata como seus, mesmo os recém-chegados que logo encontram nela uma amiga. Apresenta-se sempre do mesmo modo: “Olá! Eu sou a Célia”. A escassez do seu discurso espelha a humildade que habita nela, mais propícia para ouvir do que largar sentenças, mais apostada na fraternidade do que no evidenciar das diferenças, o que faz que ao seu lado todos se sintam bem. Sejamos sintéticos também: obrigado Célia. Por incrível que pareça, ainda há gente assim, como o Mundo seria melhor se mais Célias houvesse!

A DEMORA NA ASSIMILAÇÃO DOS AUTOMATISMOS FUNCIONAIS

Chamamos código ao conjunto das ordens ou comandos a instalar num cão e trabalhamos para que eles se transformem em automatismos funcionais. A riqueza do código sempre apontará para o maior número de automatismos instalados, que tanto podem ser direccionais, de imobilização, lúdicos ou específicos. Todos eles visam a autonomia condicionada dos cães, apostam na sua sobrevivência e oferecem o seu uso. A autonomia condicionada assenta sobre a acção e a sua cessação (travamento e aceleração). A maior ou menor riqueza do código dependerá de dois factores: da qualidade dos condutores e da capacidade de aprendizagem dos cães. A capacitação dos condutores é uma das nossas metas e a capacidade de aprendizagem dos cães irá depender de vários impulsos herdados, que uma vez somados à excelência do impulso ao conhecimento, irão estabelecer a diferença gradativa dos cães. Um bom imprinting, uma boa instalação doméstica e o acerto no acompanhamento dos vários ciclos infantis são subsídios que não podemos desprezar, porque constituem o todo da experiência directa canina e possibilitam a aceitação do código sem maiores atropelos. Para além das diferenças individuais, a capacidade de aprendizagem canina encontra-se cativa aos diferentes grupos somáticos, consoante o seu propósito original e ou posterior selecção. A capacidade de aprendizagem de um cão pode ser melhorada através da experiência variada e rica, quando operada na idade da cópia (4 meses), altura em que os cachorros apresentam maior predisposição e a sua plasticidade é tanto física quanto cognitiva, manifestando nesta altura o desejo de seguir os adultos que virão a tornar-se seus mestres. A nossa opção pelo Método da Precocidade, que devemos a Trumler, visa exactamente esse propósito. Por outro lado, a comunicação interespécies que o adestramento exige, irá depender, como em qualquer mensagem, da qualidade dos emissores e receptores, o que irá classificar os binómios em mais ou menos aptos (o homem deve fazer-se entender para que o cão o siga). O despreparo e a novidade apanham os cães de surpresa e podem obrigá-los a acções inesperadas e próprias dos seus instintos. Para que os comandos passem a automatismos e se alcance o código desejado, que pode acontecer por diferentes linguagens (verbal, gestual ou sonora), é necessário tirar-se partido das diferentes memórias presentes nos cães, que subsidiarão o condicionamento a haver. De qualquer modo, tanto a excelência de um cão como o seu aproveitamento encontrar-se-ão dependentes da qualidade do seu mestre (condutor), e é disso que vamos aqui tratar, desnudando as causas que operam maior delonga no processo pedagógico e que obstam a absorção do código como um todo.
Guardamos do condutor do CPA Master, referindo-se às suas dificuldades iniciais no adestramento, a seguinte frase: “ Isto não é nada fácil, porque temos que procurar direcção, correr, indicar, falar, incentivar e pensar, quando exaustos e debaixo do stress que nos impede o acerto”, perante a novidade da condução dinâmica e diante de obstáculos multi-direccionais (técnica de condução). Como o adestramento é dinâmico, tirado a partir dos diferentes andamentos naturais presentes nos cães, vemo-nos obrigados a considerar o tempo de reacção dos condutores, porque dele dependerá, em grande medida, a instalação do código, a supremacia dos comandos e a sua transformação em automatismos funcionais, que a não acontecerem, lançarão os cães na mais profunda confusão. É por demais evidente que o acerto nos comandos dependerá do seu uso, do tempo dispendido no treino, que por definição é rigor. Será a sua proficuidade que melhor preparará os condutores cinotécnicos, diminuindo assim a surpresa que sempre lhes causa embaraço. Entendemos o treino como um simulacro e meio de preparação para as situações reais. Se seguirmos outra filosofia, facilmente entenderemos os seus propósitos, geralmente ligados ao lazer ingénuo, à exibição e ao mundo do espectáculo, objectivos que se prestam a várias terapias, que aumentam a auto-estima humana e os seus bolsos, mas que nem sempre consideram o bem-estar dos seus parceiros de quatro patas, os “orelhudos” que os acompanham um metro mais abaixo.
O que levará à delonga do tempo de reacção para além da pouca assiduidade dos condutores no treino? Como deverá proceder o Adestrador? Que soluções deverá indicar para que o acerto aconteça automaticamente?
Ainda antes de considerarmos as razões psíquicas, somos obrigados a confessar que a desenvoltura no adestramento se encontra ligada à disponibilidade física dos condutores, que a melhoria gradual dos seus indíces atléticos, que naturalmente acontecerá com o treino, irá contribui para uma melhor prestação, porque aprenderão a agir em movimento e conseguirão trabalhar por antecipação como lhes será exigível, factores que os ajudarão no conhecimento mais tangível dos animais que conduzem. A ausência de recapitulação dos exercícios adiantados pela Escola obriga ao improviso e por conseguinte ao desapego dos procedimentos. A transição do conceito para a prática não é automática e cria dificuldades acrescidas nos condutores mais distraídos ou naqueles que apresentam maiores dificuldades de concentração, fazendo-os pairar entre o “ver” e o “agir”. O fenómeno é mais visível nos condutores a contas com a puberdade e nos por demais maduros, o que os levará à demora na reacção acertada, os primeiros pela novidade biológica e os segundos pela progressão da idade. Os condutores que trabalham em horários nocturnos (médicos, enfermeiros, polícias, etc.) são geralmente invadidos pela sonolência e pela fadiga, o que lhes afectará a concentração e fará tardar a sua reacção. São geralmente mais irritadiços, aceitam mal os reparos e não procuram ajuda. O mesmo sucede com os ressacados e com os clientes assíduos das “nights”. A demora na assimilação dos automatismos funcionais sempre apontará para a ausência da concentração, visível na demora das reacções entre a identificação do problema e a sua solução (aplicação do comando certo), na delonga entre o estímulo e a resposta adequada. Sempre seremos confrontados com indivíduos propensos à desconcentração, traídos ou não pelas suas emoções, o que se compreende diante do relacionamento entre homens e cães.
A indesejável desconcentração pode ainda ser provocada por alguns medicamentos que actuam sobre o sistema nervoso, tais como ansiolíticos, sedativos e outros, assim como resultar de vários medicamentos de venda livre, geralmente entendidos como inócuos (analgésicos, xaropes antitússicos, anti-histamínicos, antigripais etc., muitas vezes automedicados). O desmame de alguns destes medicamentos pode também causar alguns entraves no tempo de reacção desses pacientes, aumentar a sua irritabilidade ou gerar o seu desalento sistemático. A experiência tem-nos revelado que 2/3 dos condutores cinotécnicos acima dos 50 anos de idade, entre homens e mulheres, toma diariamente um ou mais sedativos ou ansiolíticos e não escapa ao alívio de algum analgésico. Os doentes eventuais e os crónicos, assim como os sujeitos a estados emocionais fortes (stress, tristeza, euforia preocupação, etc.), podem também apresentar dificuldades de concentração e por inerência manifestar reacções deslocadas ou intempestivas. Os concorrentes à metadona podem manifestar igual insuficiência.
Na tentativa de solucionar os problemas aqui adiantados, o adestrador ver-se-á obrigado a fomentar exercícios que melhorem os índices atléticos dos condutores, a convidar os menos aplicados para o trabalho, a tirar partido da mecanicidade das acções junto dos inato desconcentrados, a diminuir a carga dos exercícios para os que laboram invariavelmente durante a noite, a incentivar os jovens para uma vida saudável e ao aquilatar do estado dos doentes, dos mais fragilizados e dos dependentes de medicamentos, criando para eles, caso se justifique, classes separadas ou aulas individuais. Quem disse que ser Adestrador é tarefa fácil?
Não podemos dispensar a melhor das concentrações na condução dos cães que nos pertencem, porque eles necessitam de ser codificados, em prol da sua salvaguarda e em abono daqueles que com eles se cruzam. Para que isso suceda é necessário que os comandos passem a automatismos, que o tempo de reacção entre a identificação do problema e a sua resolução não exceda um segundo. Em síntese, tentar transformar a condução cinotécnica num acto reflexo, mercê da sua prática diária e pela melhoria dos estados físico e anímico dos condutores. Que duro trabalho nos espera! Não nos dará ele volta ao miolo? Há quem jure que sim.

terça-feira, 17 de maio de 2011

NOTA DO EDITOR

Vários leitores chamaram-nos à atenção sobre a notícia que demos sobre o falecimento do nosso aluno Carlos Alberto Peçegueiro Veríssimo, nomeadamente acerca do modo como escrevemos o seu primeiro nome de família, julgando encontrar ali um erro a necessitar de correcção. Esclarece-se que, apesar desse apelido se escrever Pessegueiro e de ser essa a grafia que consta nos documentos oficiais do defunto, toda a sua ascendência uterina tinha como nome de família “Peçegueiro”, o que aponta para uma etimologia diferente e reclama outra origem. Graças a isso, o Carlos adquiriu carinhosamente a alcunha escolar de “Rapesch”, numa transliteração dum substantivo semita muito comum no Alentejo, Estremadura e Ribatejo, em tempos idos e anteriores à nacionalidade, que nada tem a ver com pêssegos ou com a árvore que os produz, mas sim oriunda doutra tradição oral. O apelido “Peçegueiro” cruzou o mar e chegou ao Brasil, identifica uma etnia específica entre os portugueses e esteve no passado associado a gente poderosa. Deliberadamente e conhecedores do carinho que o Carlos nutria pela mãe, na hora da despedida, associámos ao homem o nome da sua família materna. Por outro lado e antes que nos acusem de algum proselitismo, adiantamos que o companheiro agora desaparecido era familiar de um dos pastorinhos de Fátima. Agradecemos ainda o cuidado que os nossos leitores têm com as nossas publicações, porque são nossos destinatários e para eles trabalhamos. Bem hajam, Insha’Allah assim continuem. Em sua representação e dos que estiveram ausentes, a classe escolar, capitaneada pelo Monitor Tiago Soares, fez-se presente no velório, apresentando-se com as tradicionais t-shirts negras da Acendura e depositando outra aos pés do defunto, indivíduo que connosco dividiu a última década da sua vida e que merecia muito mais do que a coroa de flores com que foi homenageado. Connosco conduziu os seguintes CPA’S: Toureiro, Luna e Tote, demonstrando um alto espírito colectivo, graciosidade técnica e absoluto controlo sobre os cães que ensinou.

BUSCAR OUTRO PARA PERDER OS DOIS

Infelizmente, este é um erro bastante comum, que sempre se repete e que invariavelmente aponta prò disparate: quando um proprietário canino vai buscar um segundo cão sem ter alcançado o domínio completo sobre o primeiro. Não é de estranhar que perca os dois, que a matilha animal aumente os seus dissabores e venha a causar vítimas. Esta opção não esconde a irresponsabilidade e é própria dos indivíduos pouco esforçados, daqueles que pensam que os cães podem viver tal qual canários enjaulados em gaiolas. E depois, se eu não tenho tempo para um cão, como poderei tê-lo para dois? A ausência de domínio por parte do líder ou uma liderança imprópria levam os cães a agir de modo próprio e de acordo com os seus instintos, algo que reprovamos e que pode levar até ao sacrifício dos animais. A saga é própria de gente moça, grande nas ambições e parca de soluções, também doutros cuja idade não lhes trouxe a sabedoria necessária ou daqueles que naturalmente são imprevidentes. Se houver aqui livre arbítrio, ele terá que provir da razão, face ao aumento das dificuldades e a duplicidade dos riscos. Se o cão mais velho for anti-social, como se irá comportar o mais novo? Com quem aprenderá? É possível que o sonho comande a vida, mas é também importante andarmos aqui de olhos abertos e com os pés assentes na terra, conselho que sempre ouvimos da boca de quem nos quer bem. Já sabe, se você não tem tempo para o seu cão, se tem dificuldades de entendimento ou já se desinteressou dele, arranje tempo, procure o necessário entendimento e descubra o muito que ele tem para dar. Talvez não venha a precisar de um segundo cão e descubra finalmente qual a sua dimensão real. Os cães não são para levar de ânimo leve e a leviandade das opções pode transformar-se num caso muito sério. Exemplos não faltam e problemas muito menos.

domingo, 15 de maio de 2011

A LEI DE MURPHY E AS OPÇÕES TÉCNICAS DOS CONDUTORES CANINOS

Antes de tratarmos da relação que o título acima sugere, porque ordinariamente antecede a inscrição dos condutores escolares, lembramos aqui uma pergunta já gasta e que sempre volta à tona: “ De quanto tempo precisarei para treinar o meu cão?”. E como estamos a falar de leis, neste sentido de aforismos ocidentais, lembramos aqui uma outra – a de Hofstadter, porque ela responde cabalmente à pergunta que nos é levantada, ainda que de forma irónica: “É sempre preciso mais tempo que o previsto, mesmo quando se leva em conta a lei de Hofstadter”. E isto porquê? Porque a capacitação dos cães sempre dependerá da qualidade dos seus mestres, das mais-valias técnicas dos seus condutores (do seu índice de progresso) e não tanto da qualidade ou das características individuais de cada cão.
Superabundam pelas pet-shops livros sobre adestramento, obras sintéticas cuja política é: “Seja você a ensinar o seu cão”. Esse esforço é louvável por dois motivos, pelo esclarecimento e pelo evitar de males maiores, já que os exercícios propostos são de cariz lúdico, do agrado dos cães e alcançados a partir dos seus impulsos herdados mais comuns. Contudo, os cães menos comilões apresentarão dificuldades inesperadas e os mais activos menor capacidade de concentração, sempre subsistirão cães super distraídos e outros completamente desinteressados, indivíduos mais instintivos do que outros e alguns que se rebelarão contra os exercícios propostos, dificuldades não descritas nesses livros de bolso, carregados de boas intenções e omissos de soluções. Será a insatisfação dos proprietários caninos que os levará à nossa procura.


O mundo da cinotecnia é dominado por ambições, sentimentos e afectos que nem sempre são visíveis noutras áreas da actividade humana, porque a relação binomial é íntima, pode apresentar-se como resposta ou refúgio e os condutores desnudam-se nela tal qual são, de acordo com as suas expectativas, modo de vida e capacidade de resolução. O espírito militar já há muito que foi banido das escolas civis, a mecanicidade das acções foi substituída pela recompensa e a emoção destronou o velho conceito de “ordem unida”. Este avanço, há tanto devido aos cães, não tem acontecido sem problemas, porque sempre será mais fácil disciplinar do que convencer, regrar do que lidar com as diferenças, considerando a morosidade do processo pedagógico. Não obstante, foi o repúdio pela “tábua rasa” que transformou o adestramento numa arte, restituindo aos condutores o seu cunho pessoal e a explosão individual das suas mais-valias, coisa inalcançável pelo “cobrir pela frente” e pelo “alinhar pela direita”. A recapitulação doméstica tem vindo a substituir e a melhor subsidiar a instrução escolar, o que levou ao aumento da cumplicidade, factor indispensável ao bom entendimento binomial e por consequência ao melhor desempenho em classe. Com isto se redescobriu a importância da instalação doméstica nos cães, o acompanhamento dos seus ciclos infantis e o alcance da liderança por meios ou métodos mais naturais e substancialmente menos violentos, com benefícios insofismáveis para o desenvolvimento do sentimento territorial canino.

A novidade dos métodos não resolveu, em absoluto, o velho problema dos donos, dito antropológico e por isso mesmo ligado aos indivíduos, ao seu perfil psicológico, carácter, viver social e cultura, porque ainda hoje nos vemos obrigados a incentivar uns e a travar outros, manobra que carece de tacto, controlo, sabedoria e paciência, para que a razão não se transforme em disparate e o fim seja alcançável. Tanto hoje como no passado, os homens têm reflectido na cinotecnia o peso da sociedade e a carga dos seus valores, quer por aceitação quer por oposição, evidenciando características próprias ou impróprias para o livre curso do adestramento. Sem aprimoramento dos donos jamais haverá um adestramento capaz, categórico e evolutivo, porque o cão age por reflexo e sempre seguirá o exemplo, o que nos transporta para a temática da liderança.

O exercício da liderança é indispensável ao adestramento e cada cão poderá reclamar diferente tipo ou modo para a sua aceitação, de acordo com o particular dos seus impulsos herdados, do seu imprinting, experiência directa e perfil psicológico. Como a maioria dos donos escolhe cachorros arbitrariamente, segundo percepções, sensações e sentimentos únicos, muitas vezes inatingíveis prós outros porque resultam de sonhos, vemo-nos obrigados à árdua tarefa de coadunar o sonho com a realidade, de lidarmos com o desalento daqueles que presos no virtual tropeçam na prática. E é aqui que entra a Lei de Murphy, um engenheiro aeroespacial norte-americano, que nos adianta uma regra prestimosa que convém praticar, inculcar e reavivar. Diz ela: “Se qualquer coisa pode correr mal, certamente vai correr mal”.

Visando a sua aplicação prática na cinotecnia e considerando a inexperiência dos condutores, normalmente apegados aos milagres e devotos da sorte e do azar, que vêem coisas que ninguém vê e que somente esperam que aconteça, convém insistir-lhes no apego aos procedimentos, explicar-lhes que se procederem errado dificilmente o cão agirá certo, muito embora já tenhamos visto o contrário pela excelência de alguns cães e não foram assim tão poucos. Mal comparados, os recém-chegados condutores de cães são como aqueles que chegam à faculdade sem primeiro terem adquirido métodos de estudo, resultando disso as consequências já conhecidas. Qualquer exercício ou desempenho canino pode constituir-se num perigo para o seu executante e é bom que os seus líderes saibam disso. Só o apego aos procedimentos, que produz a excelência técnica, conjuntamente com o respeito pelos mais elementares princípios da pedagogia geral de ensino, de que repetidas vezes já falámos, podem conduzir-nos ao sucesso. Trata-se aqui de minorar os riscos e de outra coisa não podemos ser adeptos, não somos nós que temos como objectivo central do adestramento a salvaguarda dos cães?

Aplicar a Lei de Murphy irá ajudar-nos a formar melhores condutores, a torná-los mais objectivos, previdentes e conscientes, levá-los-á à excelência operacional e à certeza dos seus objectivos, mas sobretudo ratificará a comunicação interespécies, garantirá o sucesso do processo pedagógico e a melhor resposta animal, factos possíveis pelo apego aos procedimentos que gera a certeza técnica e anula os riscos, quer eles sejam de insucesso, quer se revertam em aversões ou lesões. O líder sempre transportará a vida do seu cão pela mão, é ele que tem a chave dos seus códigos e dele dependerá o melhor desempenho do animal. Apetece-nos aqui dizer que o material tem sempre razão, subentendendo disso a figura do cão. Convidar os condutores para o acerto é a nossa primeira meta e já sabemos que isso nunca foi fácil. Apesar das dificuldades, continuamos a adestrar homens para que sejam secundados pelos cães. Vale a pena relembrar a Lei de Murphy, os donos evitam os disparate e os cães agradecem. Doravante, antes de dar uma ordem ao seu cão, pense primeiro, peça ajuda se não tiver a certeza de estar a agir correctamente, pois para isso estamos cá e à sua disposição – compreenda o que Murphy tornou público.

sábado, 14 de maio de 2011

CARLOS ALBERTO PEÇEGUEIRO VERÍSSIMO: A ÚLTIMA FAENA



Faleceu hoje, dia 14 de Maio de 2011, um dia depois das celebrações solenes em Fátima, o nosso companheiro e amigo Carlos Alberto Peçegueiro Veríssimo, vítima de doença prolongada. A sua partida deixa-nos abatidos e substancialmente mais pobres, porque este companheiro sempre cerrou fileiras connosco e sempre se fez presente quanto convidado a apresentar-se, participando em imensas exibições da escola e auxiliando-nos quando necessário nas filmagens. No seu restaurante celebrámos ao longo dos anos muitas ocasiões festivas, sempre fomos bem acolhidos e melhor servidos, porque o Carlos foi um genuíno acendra, mesmo nos momentos mais difíceis que atravessámos. Queremos aqui transmitir para a família enlutada e para os seus amigos os nossos sentidos pêsames. O homem do cão preto, porque assim também era conhecido, foi um homem alegre, brejeiro, de sorriso fácil e amante da festa taurina, um indivíduo de gostos simples que tudo fazia para agradar. O forcado das muitas faenas foi colhido pela morte, mas o seu nome será guardado e transmitido até às últimas levas de acendras, porque o mereceu em vida e isso será relembrado para além da sua morte.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

CÃES: O QUE FAZER COM ELES

Desde o final do Sec. XIX até aos nossos dias, os homens têm adestrado e aproveitado os cães para os mais variados serviços, servindo-se deles para colmatar dificuldades e alcançar outros tantos benefícios, O cão de trabalho, tal qual o conhecemos hoje, parente próximo dos cães de pastoreio, caça, arena e circo de outrora, começou a germinar nos alvores do Sec. XX, altura em que se assiste ao nascimento mais afincado dos cães ditos especialistas a quem o uso militar não foi alheio, facto comprovado pela participação canina nas duas Grandes Guerras, onde o cão de caça vira sapador, o molosso carregador e o pastor cão de patrulha. A perca progressiva de atribuições militares, intrinsecamente ligada à alteração do modo de guerrear e também a uma maior sensibilização relativa aos direitos dos animais, porque muitos abusos aconteceram, acabou por desmobilizar o cão familiar e transformá-lo em polícia. Posteriormente irá acontecer o boom das classes de trabalho e a proliferação dos centros de treino, uns vocacionados para uma raça específica e outros endereçados a todos os cães, germinados pelo stress pós-traumático de alguns e pelos sonhos incontidos de outros, porque o sonho comanda a vida, continuamos com pesadelos e ainda não nos libertámos da predação.

Sabemos quem disse, pela primeira vez e sem equívocos, que os cães nasceram para trabalhar e que nisso deveriam permanecer, mas será que no início do século passado já se falava de especicismo e se tinha em conta a globalidade dos abusos que iriam ser praticados sobre os cães? Que se saiba, Stephanitz era militar, não um bruxo ou vidente, até porque a maioria dos Cães de Pastor Alemão já há muito que se encontra arredada dos centros de treino, o que nos leva a entender essas palavras como um desejo ou aviso por parte do extinto oficial de cavalaria alemão, cativo à sua época, produto da erudição de então e fruto da experiência que teve. Como se compreende, os cães não nasceram para trabalhar, resultando o seu trabalho da liderança humana e da perca de autonomia que os condenou à dependência. Assim sendo, uma pergunta se levanta: o que fazer com eles?
Não há dúvida que os cães que “trabalham” são mais saudáveis do que aqueles que se encontram sistematicamente enjaulados ou desprezados, que a prática desportiva contribui para o seu bem-estar e longevidade, que a relação binomial é uma resposta positiva para o seu viver social e que o seu sentimento gregário se robustece pela companhia. Mas não sejamos hipócritas, a nossa relação com os cães não é desinteressada, porque mais cedo ao mais tarde todos chegaremos à mesma conclusão, ainda que não o confessemos publicamente: temos cães porque esperamos deles o seu fim terapêutico, porque nos fazem sentir bem e porque com eles recriamos o nosso mundo, tantas vezes distante do que temos e daquele que desejávamos. Não será pura ingratidão instarmos com eles em determinados movimentos ou figuras, sujeitá-los ao nosso gozo e recompensá-los somente segundo as vitórias que nos oferecem? Mas afinal, deveremos ou não treinar cães? Treiná-los somente para nos valerem ou saciarem as incapacidades de outros? Olhando para trás e diante da correria do tempo, onde a sabedoria humana tarda em chegar e tem curta duração, à imitação de muitos prestigiados cinólogos no epílogo das suas vidas, também nós levantamos estas questões, considerando o sucesso relativo, o número dos insucessos e a cegueira das ambições, actos distantes das aspirações naturais daqueles que se deixam conduzir pela trela.
No nosso singelo entender, certamente limitado pela pouca erudição, a centralidade do treino deverá recair sobre os benefícios pró cão e não sobre a sua reciprocidade ou serviço, coisa que geralmente não tarda por força da permuta entre o empenho e a satisfação. Para que isso aconteça e por mais estranho que nos pareça, é crucial educar e capacitar os donos nesse propósito, porque o aforismo “quem tem medo, compra um cão” é aqui impróprio como prática e lição de vida. O objectivo central do adestramento deverá ser a salvaguarda dos cães e todas as suas metas alcançadas a partir disso. Tanto a absorção do conceito como a sua prática subsequente são tarefas árduas, porque obrigam à alteração de hábitos, estabelecem novas rotinas, obrigam a maior disponibilidade e podem alterar o modo de vida e a filosofia reinante nas pessoas até ali. A isso obriga a comunicação interespécies e o compromisso que assumimos diante os animais, tantas vezes esquecido face a outras obrigações. Cada cão deverá ser treinado de acordo com o ecossistema onde se encontra inserido e o treino deverá considerar o particular da sua sobrevivência, contribuir para o seu bem-estar e potenciar os requisitos inerentes à sua boa instalação, facilitar o seu maneio e possibilitar a coabitação harmoniosa na sociedade. O resto, como tantas vezes já vimos, não tardará e virá por acréscimo, caso isso nos interesse.

E respeitando o objectivo central que adiantámos, incluímos como seus subsídios uma boa instalação doméstica, o acompanhamento dos ciclos infantis, o passeio e higiene diários, a prática sistemática da ginástica, o concurso à obediência, o estabelecimento da liderança, o aproveitamento e potenciação da máquina sensorial canina, o uso da recompensa, a novidade de desafios, a sociabilização, a recusa de engodos, a identificação de perigos e inimigos, a aquisição de hábitos de higiene e tantas outras coisas indispensáveis à sobrevivência dos animais, como são também as visitas regulares ao veterinário e uma alimentação adequada. Tudo isto tende a aumentar a cumplicidade binomial e sem ela dificilmente chegaremos à constituição de uma verdadeira equipa e a um entendimento satisfatório e ambivalente. Treinar o cão para sobreviver é ajudar o dono a consegui-lo, porque o adestramento nos nossos moldes tem dois destinatários: o dono e cão. Sabendo quem tem necessidade de se fazer entender, de imediato compreendemos quem necessitará de maior instrução e quem será alvo de melhor aprimoramento, de constante correcção e preparação. É evidente que tudo será facilitado pela relação havida (óptima) entre tratamento e treino. Estamos cá para fazer os cães felizes.

(PS. Deliberadamente este texto não obedeceu às novas regras do recente acordo ortográfico, porque respeitamos a etimologia, a gramática e sintaxe latinas, bem patrimonial que não queremos descuidar e que subsidia a melhor absorção e compreensão das restantes línguas europeias, contra o parecer de outros mais doutos do que nós, exuberantes nos cargos e bem vestidos de fatos, fatos que não podemos ignorar)