quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

A SOLUÇÃO “HAAS & MOUFFLET” : LES CHIENS DE L’ALASKA CHEZ NOUS

Como preâmbulo ao tema, aproveitando-o e porque importa fazer justiça, sentimo-nos obrigados a falar sobre o Malamute do Alasca (Alaskan Malamute), raça que conhecemos bem e da qual treinámos vários exemplares, que não goza de grande reputação entre nós e que tem vindo a ser apelidada de primitiva, rude e de pouco préstimo, o que a nosso ver não corresponde à verdade, pois se assim fosse, como poderia ter contribuído de forma tão positiva para a formação do Pastor de Shiloh?
Se há actividades humanas onde o racismo e a xenofobia se sintam em casa e tendam a perpetuar-se, o adestramento será uma delas, porque se alicerça na eugenia negativa que o sustenta e continua a considerar ou desconsiderar os cães em função da sua raça, cegueira que invariavelmente não vê, a supremacia da selecção natural sobre a artificial, resultando daí o asco aos rafeiros. Graças à mesma filosofia e a alguns pressupostos dela advindos, o Malamute do Alasca tem sido mal compreendido e pouco explorado, como se fosse exclusivamente uma besta de carga, um semi-lobo ou uma fera para exposição, a despeito de ser um companheiro leal e participativo, um compincha para as crianças, um atleta de eleição e um guardião activo, seguro e silencioso, para além de ser rústico, resistente e pouco exigente. Gostar das características de uma raça em particular, não deverá ser um impedimento para apreciar outras e aquilatar do seu potencial. Assim, estigmatizar o Malamute, é um erro crasso que não esconde a precariedade dos adestradores e a sua demanda pelo facilitismo.
Vamos hoje falar dum massivo transporte intercontinental de cães com fins militares, que teve como ponto de partida o Alasca e como destino a cadeia montanhosa dos Vosges, ocorrido em 1915 e durante a I Guerra Mundial. Não foi o maior transporte militar intercontinental de cães já realizado, porque esse aconteceu da Alemanha nazi para o Japão, sob os auspícios da II Guerra Mundial, quando III Reich cedeu alguns milhares de cães ao seu aliado nipónico.
A Solução “Haas & Mouffet”, designação inicialmente pejorativa (oriunda de alguns oficiais de cavalaria franceses) e que adiantava o nome dos seus mentores, o Tenente René Haas e o Capitão Louis Moufflet, militares gauleses, residentes no Alasca antes da guerra e responsáveis pelo envio de 436 cães de trenó e seu equipamento, de Nome no Alasca para as posições francesas nos Vosges, para substituírem o trabalho de cavalos e mulas, substancialmente mais caros, cerca de quatro vezes mais, e menos operacionais naquelas montanhas geladas, cujo mau estado das vias impedia a circulação de viaturas automóveis, já que a neve chegava nos cumes aos 2m de altura. Quando aquele conflito mundial terminou, sobreviveram apenas 189 cães (menos de 44%), sendo alguns deles medalhados pelo seu esforço e meritório contributo militar.
Nunca o mundo havia assistido a um recrutamento tão grande de cães para o mesmo fim, que tiveram que atravessar o Canadá, cruzar o Atlântico, chegar a Le Havre e dali para a frente dos Vosges, passando por Seattle e pelo Quebec, sujeitando-se a longas viagens em diferentes meios de transporte. A parte mais temida e perigosa da viagem foi a marítima, porque os cães, ao fazerem barulho, poderiam alertar os submarinos alemães que infestavam o Oceano. Graciosamente, a travessia ocorreu sem acidentes e homens, cães e material, chegaram ilesos ao continente europeu, mérito que se ficou a dever a americano de nome Allan Scott, um exímio “musher”, que voluntário por conta própria (os Estados Unidos ainda eram neutrais) e contra à vontade da sua esposa, se fez ao mar e tomou parte no conflito.
Do Canadá também vieram alguns condutores de trenó experimentados, que viriam a servir de instrutores aos militares franceses designados para aquela missão, que a princípio sentiram dificuldades na absorção dos comandos verbais ingleses instalados nos cães e que achavam despropositado o recrutamento daqueles animais, de quem imediatamente se riram, mas que mostraram ser silenciosos, dóceis e indiferentes aos disparados perto deles, conseguindo 10 cães carregar e transportar 250kg de carga útil, apesar de terem sido baptizados com um estrondoso e terrível bombardeamento.
A ideia inicial era a de formar 60 equipas de 7a 9 cães, deixando de reserva 20, o que veio a suceder. Para além dos canadianos já no terreno, dos quais constava um padre, que fora missionário no Canadá (o padre Bérnard) e dos tripulantes que acompanharam os cães, foram ainda recrutados soldados alpinos e alsacianos. Do grosso daqueles cães e tripulantes foram constituídas duas secções, criadas e às ordens do Capitão Moufflet, sendo a primeira comandada por um tenente e constituída por 68 homens, dos quais faziam parte 4 sargentos, 46 condutores caninos, 160 cães e 25 trenós. A segunda secção, igualmente comandada por um oficial, pouco diferia da primeira em efectivos e material. Cada atrelado podia transportar de 300 a 400kg, transitando a uma velocidade de 8kms por hora e numa extensão entre 40 a 70km diários, auxílio que se revelou indispensável para as tropas acantonadas nas montanhas, que assim recebiam atempadamente combustível, munições, provisões e roupas quentes. No verão os trenós paravam, mas sempre que o serviço exigia, eram-lhes acoplados rodas de borracha e lá partiam para as suas missões.
A visão de dois oficiais franceses (um deles havia sido prospector de ouro no Canadá) e à experiência dum destemido “musher” americano, acabaram por mudar o curso da guerra, conseguindo-o através de cães de mushing, heróis forçados que se revelaram indispensáveis no esforço de guerra e que venceram milhas por terra e por mar, para acudir aos soldados que deles precisavam numas longínquas montanhas, perto da Alemanha e com a Floresta Negra pela frente. Ao contar-vos esta verdadeira epopeia de homens e cães, queremos antes de tudo, suscitar o respeito que é devido aos cães que se prestam ao mushing, aos do passado, aos do presente e do futuro, porque ainda hoje se encontram à nossa disposição. Para terminar, queremos agradecer os trabalhos presentes no site chiendetraineau.free.fr e no Le Blog de l’ULAC de Bagnolet, sem os quais não poderíamos trazer-vos esta história, ao mesmo tempo trágica e vitoriosa, que realça mais uma vez, o auxílio que os cães nos prestam. Seguem as fotos de Scott Allan, Louis Moufflet e René Haas.
Para a semana cá estaremos com outra narrativa do contributo canino, que ao perder-se pelos tempos, merece ser relembrado.

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