sábado, 29 de maio de 2010

O romano que há em nós

Não são só os cães dominantes que vêem aumentada a sua prole, o mesmo acontece entre os homens no seu percurso civilizacional. Os portugueses resultaram da fusão de vários povos antigos, anteriores à chegada das legiões romanas e por elas assimilados e congregados. O viver romano generalizou-se na Península e os germanos que aqui chegaram mais tarde (Schwaben und Westgoten), acabaram por abraçar também a cultura, a língua e os usos latinos, com os quais já antes se haviam familiarizado. Também graças aos casamentos mistos, a Igreja conseguiu ao tempo resolver a dissensão ariana e tornar extensível a todos o credo niceno, gente que posteriormente os mouros apelidarão de moçárabes e a quem darão liberdade de culto. Por detrás de cada português poderá haver um grego, um celta, um fenício, um cretense, um germano, um alano, um judeu ou um árabe, assim como outros povos transportados pelas posteriores descobertas marítimas de lugares mais distantes ou recônditos. Para além destes, ainda circula entre nós muito sangue romano, apesar de heterogéneo e de acordo com o particular das legiões imperiais. Daí não espantar a ninguém, ser o ADN do português marginal em relação ao dos seus parceiros europeus e mais próximo dos brasileiros e cabo-verdianos (na Europa só os bascos têm a mesma incidência de grupos sanguíneos negativos que os portugueses).

A língua portuguesa é filha do latim, não do clássico e próprio dos eruditos, mas daquele que se falava entre as hostes e que era audível entre os construtores de pontes e estradas, comerciantes e artesãos, avesso às declinações e sujeito ao remanescente étnico-geográfico, fenómeno já acontecido durante a cultura helénica e que resultou no grego koiné (grego popular), língua presente no Novo Testamento bíblico. Outras línguas contribuíram para a formação do português, mas nenhuma delas usurpou a hegemonia do latim. O abraçar da cultura romana pelas tribos invasoras germânicas, por exemplo, fez com que poucas palavras ou termos visigóticos tenham chegado até aos nossos dias (de imediato lembramo-nos de um palavrão e do substantivo espora), muito embora no falar das gentes nortenhas o ditongo “ei” possa soar a “ai” e muitas vezes o “r” saia aspirado, facto a que a que não devem ser alheios, supostamente, os reinos dos suevos e visigodos, o condado portucalense e a posterior dinastia borgonhesa (1ª dinastia portuguesa). Não obstante, tanto no passado como no presente, nada sustenta um grupo racial imaculado, atendendo às migrações na antiguidade, à constituição dos celtiberos, à coabitação entre godos, alanos e outros e à invasão muçulmana, que apenas não tomou posse do Reino das Astúrias, protegido por uma imponente cadeia montanhosa.

O latim transformado em português embarcou nas caravelas e proliferou pelas quatro partidas do mundo, saiu do mare nostrum, cruzou todos os oceanos e foi abraçado por outras gentes. O português falado no Brasil, que jamais poderá ser considerado como língua brasileira, é um português mais adocicado e menos gutural, resultante das migrações para aquelas paragens (há que considerar a influência dos escravos africanos), profundamente nasalado, que tropeça nas vogais mudas, despreza a etimologia das palavras e que vive em constante aculturação, mostrando dessa forma o dinamismo da língua mater, também ela originalmente popular e resultante da miscelânea de vários povos. O português brasileiro tem libertado o português de Portugal dos entraves fonéticos que dificultam a sua aprendizagem. E a prova é esta: um português entende perfeitamente um brasileiro e não raramente os brasileiros têm dificuldade em compreender um português. A universalidade da nossa língua está para além dos nossos condicionalismos geográficos e diariamente é enriquecida por novos termos segundo ancestrais conceitos, fazendo reviver o soldado romano que há em nós, um guerreiro imortal que sobreviveu a todos os impérios e que alcançou descendência em todas as raças. Assim compreendemos Pessoa: “ A minha Pátria é a Língua Portuguesa”. O português nunca reivindicou por um “lebensraum”, porque se espalhou pelo mundo, abrigou-se por toda a parte e constitui família em todos. Ao longo dos séculos e dando continuidade aos milénios passados, a árvore romana continua a frutificar, onde outras não alcançam raízes por persistirem nas diferenças e se circunscreverem a si próprias, no primitivo conceito tribal ultrapassado por todos os impérios.

A precisar de levar uns toques

Não há _ _ que aguente e parafraseando uma expressão brasileira: apetece-nos “partir para a ignorância”, quando alguém nos procura e diz que o seu cão precisa de levar uns toques. Toda a gente aprendeu na escola primária, agora já não sabemos se assim é, que os animais podem ser racionais e irracionais e que apenas o homem pertence à primeira categoria. O cão é um animal irracional e fruto da sua experiência directa, não aprende sozinho e sobrevive pelos hábitos adquiridos, sendo melhor ou menor adaptado de acordo com os seus mestres, porque naturalmente se assilvestra e sempre carregará as marcas do grupo que o adoptou. Por mais estranho que nos pareça, nada espelha melhor um homem do que o seu cão, muitas vezes até mais do que os seus próprios filhos, sujeitos à individualidade, invariavelmente arredados da sua presença, ensinados por terceiros, adeptos de ideais externos à família e profundamente autónomos, mesmo que essa autonomia não os leve a lugar algum, pelo menos à desejável. Disto falarão os sociólogos com maior propriedade face à problemática das famílias actuais. Voltemos à relação homem-cão, objecto deste nosso esclarecimento.

Já dizia o Padre Américo, homem que dedicou a sua vida à protecção e capacitação dos meninos de rua: “não há rapazes maus” e nós complementamos: não existem cães sem préstimo. A relação homem-cão, que definirá o futuro comportamento canino, carece se ser próxima, cuidada e atenta, baseada na cumplicidade e sujeita aos bons ofícios da liderança. A liderança passiva não serve estas exigências e desaproveita estes benefícios, tornando-se imprestável tanto para homens como cães, porque a ausência da liderança objectiva dos primeiros obsta ao aprendizado dos segundos, animais sociais e aptos para a absorção de regras, que uma vez assimiladas, constituirão parte maioritária do seu modo de vida. Educar cães não é algo inato a todos os homens, por mais que os adorem ou se esforcem, porque o antagonismo das vontades gera resistência, provoca desgaste, exige tempo, obriga à absorção de uma metodologia própria e a competitividade canina pode levar à confrontação. O antropomorfismo não deve suceder ao especicismo, transformar-se numa prática pagã e elevar à deidade o lupino que habita connosco. Quando isto acontece, passa-se de um extremo para o outro, da condição de senhor para a de escravo e o cão, uma vez investido, não verá com bons olhos a sua despromoção. Infelizmente esta prática tem-se vulgarizado entre nós, felizmente para as escolas caninas, que abusando dos papalvos, alcançam maiores proventos pelo concurso do internamento dos cães.

Diante da situação e sabedores da “história da carraça”, outros há, graciosamente uma escassíssima minoria e da qual já nem temos memória, que receitam calmantes aos animais, porque apesar de pagarem as favas, não são eles que pagam as contas e importa cativar os clientes, isentá-los das suas culpas e remeter para os animais a causa dos seus disparates. Qualquer conflito pode gerar riqueza e quando maior é a guerra, maior será o provento de alguns. Também nesta matéria, o combate à ignorância perfila-se inglório, porque há quem pague para não sair dela e não ser incomodado, quem ganhe com a sua perpetuação e ainda angarie maior simpatia. À luz da “carta dos direitos do animal” não será isto hipocrisia? Será algo mais? O que será mais eficaz: o tratamento das causas ou a solução temporária e abrupta dos efeitos?

O “homem dos toques”, aquele que mais tarde procurará socorro, é geralmente um dono distante, incumbido prá tarefa por anuência e a pensar no bem-estar dos seus, alguém desinformado, atarefado e apostado na continuidade das suas rotinas. Tem uma relação mais ou menos distante com o animal, isenta-o de maiores reparos e transfere para os demais o preço dos seus desejos, resiste à coabitação com o cão e só o adquirirá depois de lhe ter encontrado um espaço próprio, onde não colidirá com os seus interesses e não lhe causará qualquer transtorno. O animal irá crescer no jardim e abrigar-se-á num anexo ou garagem, onde terá muito espaço para correr e “será feliz”. Arredado do viver e regras familiares, o cão irá passar a maior parte dos seus dias entregue a si próprio e separado do quotidiano do grupo adoptivo. Depois espantar-se-ão com os disparates, com o seu pouco apego aos donos e com a dificuldade em se constituir membro daquela equipa. Recentemente encontrámos uma jovem etóloga, com um currículo invejável, formada numa renomeada faculdade inglesa, com um sorriso nos lábios por detrás de uma caixa registadora… no supermercado Aki.

O que é um etólogo? Etólogos para quê? O desprezo pelas necessidades sociais caninas é o primeiro dos responsáveis pela inadequação destes companheiros, porque não produz as adaptações inerentes à sua complementaridade e coloca em risco o seu bem-estar global (social, psicológico e físico). Quem anda “a precisar de levar uns toques” são os donos. Não seria tão bom que os cães já nascessem ensinados, se auto-musculassem e adivinhassem os perigos a que se encontram sujeitos? Continuariam cães? Would it be better to Make a Farm e aproveitar a sugestão da Internet como meio de preparação para os futuros proprietários caninos? Se calhar, seria! A opção pelo cão é uma tarefa séria, exige conhecimento e auto-controle, que obriga e produz adaptações. Primeiro conheça-se a si próprio e só depois escolha o animal, busque informação, atavie-se previamente para opção e prepare-se para a novidade.

O passarinheiro dos cães e o namoro inconveniente

Todos os homens são predadores (uns mais do que outros), ainda que esse acto animal possa ser descrito por outros conceitos, aceite como desporto e transformado em reconhecidas virtudes. O cão foi recrutado desde tempos imemoriais para aumentar a predação e para defesa dos seus donos contra a acção doutros predadores, quer eles fossem homens ou feras e assim tem sobrevivido até aos nossos dias. O controlo da predação humana obrigou e continua a obrigar à elaboração de leis, que outra coisa não são do que códigos de conduta para evitar a sua impropriedade, proliferação e excesso. O assassinato, a usurpação, o roubo, a cobiça e a inveja são manifestações instintivas, primitivas e próprias de um predador, de um animal social que não olha meios, que é competitivo, dominado pelo poder e tendencialmente pouco fraterno. Sempre andaremos por cá “a braços” com o predador que há em cada um de nós.

Agora raramente se vê algum, a Lei não o permite e todas as cautelas são poucas, porque a multa é elevada e a Guarda sempre espreita. Estamos a falar do “passarinheiro”, aquele que “armava aos pássaros” e que se dedicava à sua captura, que se munia de visco, redes ou iscos e que tirava partido das águas dos regatos, onde à tarde as aves iam beber. Este predador valia-se da fome e sede dos animais para alcançar os seus intentos, não respeitando os momentos de nidificação e tirando partido deles, porque o aumento da sua prole levava os pássaros a uma maior procura de alimento, o calor tornava-os sedentos pela água e os recém-nascidos eram mais fáceis de apanhar. Antes da captura acontecia o estudo e o namoro, acções que indicariam qual o melhor local para a armadilha. Uma vez encontrado o sítio certo, que só o seria pela frequência dos passarinhos, pela garantia da sua camuflagem e pelo êxito das acções, o passarinheiro aguardava silencioso e imóvel, como se ali não estivesse, para não desaproveitar o material e não desperdiçar os engodos. Impelidos pela sede e pela fome, as aves rumavam ao cativeiro e viriam mais tarde a ser vendidas numa feira. Do mesmo modo procederam os homens com os cães quando intentaram domesticá-los, matando e engodando os adultos e raptando as suas crias. Afinal esta técnica ancestral tem permanecido inalterável até hoje e o ensino à base de engodos é prova disso, porque o cão não mudou e o homem não quer ver defraudados os seus intentos. Bem sabemos que os propósitos são outros!

À imagem do apanhador de pássaros, superabundam por aí “passarinheiros de cães”, plebe que os namora e engoda à revelia dos donos. Ainda que a sua maioria seja bem intencionada, está a criar, sem querer, uma ocasião óptima para os envenenadores e gente de intenções duvidosas, porque o cão apropria-se do hábito e não adivinha os propósitos de quem o apaparica. Grande número de residências assaltadas com os cães lá dentro foi-o pelo recurso ao engodo, particularmente perante a mudez dos bichos e diante da sua salvaguarda. A técnica utilizada é simples. Depois de escolher e estudar a casa, o larápio ou larápios vão engodando sistematicamente o cão até vencerem a sua resistência inicial, tirando partido da ausência dos donos, do pouco movimento ao seu redor e quando o petisco se torna mais apetecível (ao romper da aurora, noite adentro e quando as temperaturas são mais baixas), possibilitando assim o assalto a qualquer hora do dia. O controlo das entradas e saídas da família indicar-lhes-á quando acontece a distribuição do penso ao animal, adiantando-lhes em simultâneo qual a melhor hora para a aceitação do “petisco”. Ainda que no primeiro dia a comida possa ser jogada para o chão, breve o cão esperará pelo “passarinheiro” e pouco tempo depois aceitará as suas carícias e reparos, gemendo pela sua presença e ávido da recompensa. Naturalmente os cães mal acostumados e os glutões facilitam-lhe o trabalho. A pretexto da distribuição de publicidade, muitos meliantes controlam assim o movimento doméstico. Tomado pela urgência e diante de percalço, o ladrão não hesitará em envenenar o guardião. Facilmente se compreende da urgência relativa ao treino da recusa de engodos.

A fuga do Egas

Esta é uma histórica verídica, não uma fábula, uma narrativa fictícia ou um conto antropomórfico. O Egas era um cão (dizemos “era” porque não sabemos se ainda é vivo e se o é, breve embarcará para a Shangri-La dos cães) vivo e astuto, dado a correrias, propenso a disparates, com um forte sentimento territorial e um raro sentido de observação. Conhecemo-lo em cachorro, quando deambulava atrelado com a sua dona pela Rua dos Soeiros em Lisboa. Aos quatro meses já era enorme, evidenciava a irreverência típica dos lobeiros e já então rebocava a sua condutora, uma enfermeira aposentada que vivia só, intelectualmente superior, fisicamente deficitária e socialmente adorável. O Egas tinha vindo para o lugar de outro que se havia finado, um CPA preto-afogueado bem diferente dele e que havia deixado grande saudade. Foi adquirido a um militar da GNR que se dedicava à criação caseira de Pastores Alemães, deixou alguma prole e acabou por ingressar nas nossas fileiras.

Na escola comportava-se como um “menino de couro”, era um atleta de eleição e alcançou sem dificuldades a linguagem gestual. Tal qual um feijão-frade, que dizem ter duas caras, ajustava as contas em casa com a sua dona, quando liberto do rigor do treino e distante da presença do adestrador, comportando-se a seu bel-prazer e ignorando sistematicamente todos os reparos da sua líder, que usualmente acarretava com os estragos por ele produzidos e que normalmente via posta a sua integridade em risco. Certo dia, numa correria atrás de pombos, conseguiu partir um braço à dona, porque a levou a reboque, obrigando-a a bater violentamente com braço esquerdo contra um árvore (do mal o menos, ainda bem que conduzimos os cães à esquerda). Era um desafiador inato e enfrentava qualquer cão na via pública, independentemente da sua raça, robustez ou tamanho. Chegou à idade adulta com 70 cm de altura e 38 kg de peso, o que lhe possibilitava atingir uma velocidade instantânea de 6 metros por segundo.

Surgiu a oportunidade e a dona decidiu ir a Londres, não podendo levar o cão, deixou-o ao nosso encargo e foi hospedado no hotel escolar. Desde logo se percebeu que o bicho não via com bons olhos a separação e ausência da dona, porque de imediato se lançou a uivar e a ladrar “a todo o gás”. Preocupados com o bem-estar do animal e decididos a suavizar o seu sofrimento, levantámo-nos mais cedo e rumámos ao canil. Quando lá chegámos, para espanto nosso, todas as portas e janelas encontravam-se abertas e do Egas nem notícia! Estamos a falar de janelas elevadas a 1 metro e 20 cm do solo e de puxadores rotativos, de pesadas portas de ferro deslizantes e com trincos resistentes. Depois de desesperadas e infrutíferas buscas, ligámos ao final do dia para a sua proprietária, para lhe comunicar o ocorrido, desalentados e temendo o pior. “ O Egas é assim mesmo e eu esqueci-me de vos dizer. Ele abre o micro-ondas, come o que está lá dentro e volta a fechar a porta, faz o mesmo com o frigorífico e adora abrir portas!”- disse-nos ela.

De imediato informámos os postos concelhios da GNR, contactámos os veterinários locais, alertámos os guardas florestais e pedimos ajuda à Rádio Mafra, que de hora a hora, logo após os noticiários, punha no ar os nossos apelos, alertando os seus ouvintes para a novidade do cão em fuga e solicitando-lhes o seu possível paradeiro. Dum momento para o outro, toda a gente viu o cão e todos os cães regionais viraram pastores alemães lobeiros, à parte do seu tamanho, envergadura ou raça, o que muito sobrecarregou a nossa azáfama e aumentou o nosso desespero. Andámos literalmente por rios e montes, calcorreamos aldeias ignotas e passámos a pente fino a região. Esforço inglório diante da ausência do Egas. Pela manhã do 3º dia de fuga, por sinal um Domingo, um vendedor de “Pão de Mafra” ligou para a Rádio a dizer que tinha visto o cão junto à Ribeira de Cheleiros, quando por ali passou. Rumámos de imediato àquela depressão e mais uma vez não vimos recompensado o nosso esforço. Apostados em encontrar aquele Houdini de orelhas erectas, continuámos as buscas no local até à hora do almoço.

E porque há coisas que não se explicam, a sorte raramente acontece e a intuição só é plausível quando confirmada, decidimos ir ao encontro dumas casas isoladas na aba da serra, por um caminho pouco pisado e nada convidativo. Fomos dar a uma casa tradicional com laivos de moradia e acabámos por bater à porta. Dissemos ao seu proprietário ao que vínhamos e descrevemos pormenorizadamente o animal que procurávamos, ao que ele respondeu nunca o haver visto por ali. De qualquer modo, agradecemos-lhe a atenção e deixámos-lhe o nosso contacto, não sem que primeiro nos manifestasse a sua simpatia por cães e nos mostrasse apressadamente os seus Castro Laboreiros. Algo nos dizia, sabe-se lá porquê, que ainda iríamos ver o Egas. Não se diz que a esperança é a última coisa a morrer? Mortos de fome fomos almoçar.

Imediatamente após o almoço, recebemos uma chamada telefónica, era o homem com quem há pouco havíamos falado, a informar-nos que o Egas ia a caminho da Escola pela Estrada Nacional. Motores em marcha e pela estrada Mafra-Sintra! Mal tínhamos passado a Igreja Nova quando avistámos o cão, em marcha apressada e com a língua de fora, pelo meio da estrada e debaixo de um calor tórrido. Momentaneamente apeteceu-nos dar-lhe um correctivo, uma lição que nunca mais esquecesse, mas a alegria do reencontro era tamanha que logo corremos a abraçá-lo. O cão rejubilou quando nos viu e de imediato soltou para o carro. Nesse mesmo dia, ao final da tarde, a dona veio buscá-lo e sentimos um alívio indescritível, porque apesar das dificuldades, a história havia tido um final feliz. Demorámos a voltar para casa, a noite reconfortava-nos e cansaço pedia descanso.
Na manhã do dia seguinte a dona do Egas ligou-nos estupefacta: ele tinha acabado de defecar vários pedaços de corda. Quem o teria mantido preso? Não sabemos, quiçá temos um dedo que adivinha. Ainda bem que o ensinámos a cortar corda, porque de outro modo dificilmente o tornaríamos a ver. Sempre que temos notícia de cães desaparecidos lembramo-nos da história do Egas, do susto que apanhámos e da façanha do animal. Voltou a ficar no canil noutras ocasiões, não manifestou desejo de fugir mas também não podia: “casa roubada; trancas à porta”. Ao deixar o seu cão num hotel, não se esqueça de alertar os seus responsáveis para as tendências particulares do seu companheiro, mesmo que não o questionem acerca disso.

Boxers, Rottweilers e outros

Com o Verão à porta é preciso estar atento, porque o calor não afecta de igual modo todas as raças. Os cães de focinho achatado ou curto, que apresentam disparidade entre o comprimento do crânio e o comprimento do focinho, aumentam significativamente a frequência dos seus ritmos vitais, o que os obriga a um maior esforço e condena à exaustão. Os cães maioritariamente negros, os de pêlo duplo e os obesos incorrem nas mesmas dificuldades. O seu treino deverá ser mais curto e as sombras deverão ser procuradas. O período matinal é aquele que apresenta menores riscos, porque acima dos 28 graus centígrados o perigo subsiste. Apesar da temperatura amena, é errado treiná-los ou passeá-los ao amanhecer e ao anoitecer, porque é exactamente nessas ocasiões que o mosquito portador da leishmania prolifera e actua. Em Portugal já não podemos falar de zonas endémicas isoladas, porque todo o território nacional se encontra repleto de mosquitos deste tipo, graças à presença de campos de golfe, ao aumento das regas automáticas, à existência de charcos e aos cursos de água a céu aberto, na sua maioria poluídos e nauseabundos. Convém colocar nos canis repelentes de insectos e equipar os cães com coleiras para esse fim. Evite deixar o seu cão dentro do carro sempre que possível, mesmo que deixe as janelas abertas, não lave os canis à noite e adicione à sua lavagem creolina ou outro produto com propriedades insecticidas. Nunca coloque o cão no canil antes deste se encontrar completamente seco e mantenha-o sempre limpo e livre de dejectos. Aumente a distribuição de água e se tem bebedouros automáticos limpe-os pelo menos duas vezes ao dia. Se a parte exterior do seu canil se encontrar a descoberto, cubra-o com uma rede de sombra, porque para além de evitar a acção directa dos raios solares, impossibilita a entrada dos pássaros, que geralmente ali também defecam, contribuindo de sobremaneira para parasitoses típicas e convidando para o local toda a casta de insectos incomodativos. Os cães de pelo raso ou curto suportam melhor o calor, mas encontram-se mais vulneráveis à acção dos mosquitos. Assim como as senhoras, que fazem dieta no Inverno para irem para a praia no Verão, também os cães devem aprender nas estações frias para não rebocarem os donos na época estival, isto se apostarmos no seu bem-estar e desejarmos a cumplicidade.

Caderno de Ensino: XII. O "À frente"

O “à frente” é um automatismo direccional que possibilita o adiantamento do cão em relação ao dono. O seu ensino é iniciado à trela e procura-se o desempenho com o animal em liberdade. A instalação do comando pode e deve ser alcançada naturalmente, nos passeios diários e no retorno a casa. No ensino à trela a mão esquerda do condutor impulsiona o cão para a frente e a direita esticada para a frente estabelece a direcção; na condução em liberdade a mão que se estende para a frente é a esquerda -a mão de direcção. Os cães mais medrosos resistem ao comando e os mais valentes executam-no preferencialmente. Serve para bater território nas ruas mal iluminadas e funciona como presença ostensiva, como subsídio de tracção nas subidas íngremes e serve os propósitos de evasão caninos. Não havendo risco de confrontação e diante da impossibilidade objectiva do “junto”, a opção por este automatismo tem se revelado de extrema utilidade. A persistência neste comando tem ajudado na recuperação dos animais mais submissos e por isso mesmo menos seguros, induzindo-os à ousadia que naturalmente não manifestam. O retomar da impulsão à trela tende a levar de vencida o receio dos menos audazes. O comando gestual é indicado pela projecção da mão de condução para a frente e a distância entre os membros do binómio é normalmente de 3 metros, podendo ser alargada em função das acções requeridas e activada silenciosamente à distância.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Nómadas por sistema e pedreiros de ocasião

Continuamos a usufruir da variação dos ecossistemas e este fim-de-semana trabalhámos mais uma vez no exterior, tanto na cidade como na orla marítima. Dedicámos o tempo útil à obediência, à ginástica e à endurance. Vimo-nos obrigados a fabricar obstáculos e enfatizámos os automatismos direccionais. No Domingo almoçámos no restaurante tradicional “Beija-o-boi”, propriedade do nosso aluno e amigo Carlos Alberto Peçegueiro Veríssimo, onde fomos obsequiados com mesa farta e segundo a qualidade usual. Não podemos contar com a presença da Princesa e da Família Fernandes & Veiga Santos.

Participaram nos trabalhos os seguintes binómios: Ana/Loki, Carla Abreu/Becky, Célia/Igor, Clara/Shara, Francisco/Íris, Isabel Silva/Luna, Irina/Max, João Moura/Bonnie, Joaquim/Maggie, Luís Leal/Rocky, Rodrigo/Tarkan, Tatiana/Teka I, Tiago/Sane, Teresa/Buster e Vitor Hugo/Yoshi.

terça-feira, 18 de maio de 2010

A importância do contacto prá fusão das emoções

Diz-se que o futebol é um desporto de contacto e daí não restam dúvidas, quer se defenda, ataque, sofra uma falta ou se celebre um golo. E quando ele acontece, é curioso reparar que o seu marcador busca primeiro o reconhecimento do público e só depois corre a abraçar os restantes membros da equipa que o tornaram possível, ainda que mais tarde, no flash interview, venha a realçar o papel do colectivo em detrimento da sua prestação individual. Esta atitude de júbilo é meramente animal e lembra um cachorro que ao alcançar o brinquedo, só o entrega ao dono depois ter desfilado com ele. O adestramento é também uma arte baseada no contacto, núcleo para a fusão das emoções que garantem a unidade de propósitos dentro dos binómios, já que os indivíduos que os constituem, apesar das diferenças, são ambos mamíferos e animais sociais.

E como a relação com um cão não pode dispensar a afectividade recíproca e as adaptações produzidas pelo treino não são por si mesmas perpétuas, só a cumplicidade garantirá a melhor prestação canina, ainda que alimentada pela comunhão de vida, pela experiência dividida e pela recapitulação dos exercícios binomiais. Somente os mais imaturos tratarão os seus cães como máquinas, como uma arma guardada num armário ou como um servo para um serviço isolado, específico e independente. O cão só por si não é um guarda eficaz ou um amigo incondicional, porque não dispensa a acção da liderança e sempre espera pela retribuição, porque é fortemente emocional e actua por resposta, necessitando de estímulos próprios para as diferentes acções.

A guarda de uma casa, a boa prestação desportiva e o seu desempenho complementar nos diversos serviços cívicos sempre dependerão da relação havida com o seu tratador, porque o animal avança na certeza do apoio que sente na retaguarda. O cão não dispensa o contacto físico e exige uma inequívoca relação de proximidade, já que o seu isolamento sistemático entrega-o de mão beijada aos seus instintos, tornando-o imprevisível e por isso mesmo imprestável. A constituição binomial é um namoro constante e um despertar continuado de emoções, algo fazível pelo amor que é dispensado ao animal, porque o adestramento só alcança a indução pela investidura efectuada: quem dirá ao cão que ele capaz e o fará acreditar nisso? A excelência prestativa canina resulta de momentos menos visíveis, previamente acontecidos na intimidade e vulgarmente mal entendidos como telepáticos.

Quem não tem carinho para dar o que espera receber? A esperança nos milagres não resultará da constatação da impotência? A adaptação dos cães só poderá acontecer pela capacitação dos donos, pela alteração das suas rotinas e pela transição das suas emoções. A comunicação emocional suplanta qualquer barreira linguística e é o melhor dos veículos pró contacto interespécies.

O pastor que veio do Inn e que desembocou no Tejo

Apenas quinze quilómetros separam Branau am Inn de Marktl am Inn, respectivamente os locais de nascimento de Adolf Hitler e Joseph Ratzinger (Papa Bento XVI), não obstante a primeira localidade ser na Áustria (perto de Salzburgo) e a segunda pertencer à Alemanha (Baviera). Ambas têm em comum o Rio Inn, um dos afluentes do Danúbio que nasce nos Alpes e que atravessa três países (Suiça, Áustria e Alemanha). Apesar dos esforços de muitos, alguns até dentro da própria igreja católica, que insistem em colocar ambos à sombra da suástica, abissal é a diferença entre a ideologia do defunto “cabo da Baviera” e a praxis doutrinária de Ratzinger, facto inquestionável face à disparidade de pensamentos, porque o primeiro elegeu uma raça e o segundo abraçou aquela Deus que elegeu para Si. A vida militar do Papa debaixo da opressão do nationalsozialismus não o transforma em nazi, caso contrário, teríamos que considerar todos os ex-combatentes da Guerra Colonial também como fascistas, o que seria um tremendo disparate e jamais espelharia a verdade.

A vinda do Papa a Portugal, independentemente de se ser cristão, católico, doutros credos ou ateu, foi um acontecimento que não passou despercebido, porque mobilizou multidões, foi muito mediatizado e até deu tolerância de ponto para a função pública, apesar da maioria dos obsequiados ter dispensado tanto a doutrina como a companhia do Bispo de Roma, no interesse pelo penúltimo e exorcizando assim o inevitável, já que a morte é certa e importa viver a vida! A visita deste Papa, tão incompreendido e mal amado no mundo latino, suscitou-nos a curiosidade e dispusemo-nos a observá-lo e a ouvi-lo atentamente, pela televisão e diante de comentadores que transformaram o rigor em apologia, desvirtuando o que ouviam pelo politicamente correcto, abandonando o catecismo proposto pelo gáudio da crendice que garante as audiências. É caso para se dizer: Graças a Deus que não afundaram a teologia do Pastor do Inn, expressa em palavras simples à beira do Tejo.

Joseph Ratzinger não evidencia o beatismo formal do finado Paulo VI, o populismo outrora visível em João Paulo II, não é fotogénico nem tão pouco espectacular, evita os grandes gestos e foi obrigado a sorrir, não obstante, lá disse: “não foi a Igreja que impôs Fátima, mas Fátima que se impôs à Igreja”. Cada um interpretará isto como quiser e tirará disso as suas elações, porque o assunto é sensível e o Peregrino evitou maiores explicações, atribulado que anda com o movimento carismático nas suas fileiras e apostado na unidade de todos os cristãos, para além de fustigado pelos casos de pedofilia perpetrados por alguns membros do seu clero e assolado por questões ligadas ao celibato e ao sacerdócio feminino. Já lá vai o tempo em que papas combatiam os reinos vizinhos, o combate agora é interno e muito mais extenuante. As suas homilias e exortações foram sempre cristocêntricas e escatológicas, tendo como base doutrinal a bíblia, ainda que destorcidas por algum clero nacional, sobejamente mais mariano do que escriturístico.

Se João Paulo II contribuiu para a queda do muro de Berlim e para a unidade de todos os europeus, talvez caiba a Bento XVI o combate pela unidade de todos os cristãos que ao longo dos séculos edificaram fortes barreiras entre si, desenterrar solução para a dissenção e encontrar um compromisso melhor do que adiantado pela paz de Augsburgo, forjado pelos políticos e elaborado pela conveniência. Será este Papa uma ponte para isso? Passou por aqui um alemão vestido de Papa (um filósofo ao que consta), um adepto da razão que enfatizou três conceitos: verdade, vocação e vida eterna, um teólogo inato para o ensino e um bávaro na verdadeira acepção da palavra. Não beijou o chão à chegada mas confirmou a fé dos seus antes de partir.

Os heróis invisíveis

Não é novidade que a Acendura sempre viveu do colectivo e para o colectivo, do desempenho individual para o benefício do grupo e assim tem continuado. Todos os que não conseguiram abraçar este espírito cedo nos abandonaram e procuraram poiso noutras paragens. Manter incólume esta prática não tem sido tarefa fácil e não nos tem livrado de alguns dissabores, particularmente entre gente inconciliável e diante duma sociedade profundamente individualista, sinergista sem dar conta e apostada no desenrasca. Não decorrerá isso também da adaptação e da ausência histórica de recursos naturais? Outros mais doutos do que nós o saberão!

O que importa são os que cá estão, aqueles que por cá passaram e que contribuíram para o enriquecimento do grupo, gente que connosco subiu serras, cruzou rios, caminhou léguas infindas, incentivou os seus parceiros, ajudou os menos aptos, abraçou o nosso nome e que ainda carregou os seus filhos pela mão, homens e mulheres que fizeram do adestramento uma devoção. Muitos deles representaram o papel de ladrões para que os outros vivessem em segurança, prontificaram-se como duplos para as séries televisivas e tudo fizeram para o sucesso colectivo, a expensas próprias e sem esperar retribuição. A estes heróis invisíveis presta a Escola aqui tributo, plebe desacostumada de elogios, militante por opção e que veio para servir. E na permuta entre o dar e o receber, foram por demais generosos e apostaram na alegria dos seus companheiros (homens e cães). O nosso muito obrigado a todos eles, gente que transitou da parceria para a família e que tornou possível a fraternidade. Dito assim, o reconhecimento “sabe a pouco”, mas por longos anos permanecerão na nossa memória, por suavizarem a nossa existência e terem contribuído para a aptidão e bem-estar dos nossos cães.

Carta aberta a uma leitora

Nunca tomámos esta opção, não ambicionamos protagonismo, privilegiamos a confidencialidade e respeitamos as dores alheias: toda a gente merece da nossa parte o mais profundo respeito. Apesar da relutância inicial, optámos por responder desta forma a uma leitora assídua das nossas publicações, no intuito de a ajudar e de solicitar ajuda. A senhora em questão ronda os 40 anos de idade, está divorciada, desempregada, tem uma filha maior, recebe tratamento anti-depressivo, vive com os pais e não tem carta de condução. Deseja dedicar-se à recolha de animais e ao adestramento, sem experiência prévia, tendo-nos contactado amiúde na procura de subsídios para realizar os seus desejos. Já nos visitou uma vez (a rogo nosso) e inteirou-se do trabalho por nós desenvolvido, demonstrando muito interesse e particular empenho. Tem sentido na pele as dificuldades relativas a quem concorre à canicultura e tem sido vítima da indiferença daqueles que nela se encontram já estabelecidos, quiçá pelo espectro da concorrência e pelo cada vez mais reduzido leque de clientes.

Em primeiro lugar queremos dizer à senhora”Y” que não desanime e ouse em ir adiante, muito embora as suas escolhas não sejam economicamente estáveis ou lucrativas, porque cães e gatos não são produtos de primeira necessidade e os seus direitos são continuamente ignorados, especialmente diante da crise económica que por aqui grassa e que tende a agravar-se, o que não nos isenta de facultar-lhe qualquer subsídio técnico-prático ao nosso alcance. Contudo, é bom estar ciente dos riscos que envolvem essas opções, para que a procura de novos proventos não resulte num maior endividamento. A única actividade lucrativa, ainda que sazonal, relativa aos animais de companhia é a relacionada com a sua hospedagem (hotéis para cães e gatos) e partir dela se podem implementar com sucesso outras relativas ao adestramento, à criação e ao pet care, apesar de muitos animais acabarem “esquecidos” para sempre nesses locais de acolhimento provisório, o que aumenta os encargos, diminui os lucros e dá azo a fortes dores de cabeça. A legislação em vigor é muito exigente e a fiscalização é deveras incisiva sobre projectos deste tipo, quando abraçados por particulares sem o aval autárquico ou doutras entidades relacionadas com ele. Ainda que esta actividade possa ser objecto de subsídio, ela não dispensará um estudo de viabilidade económica a apresentar à instituição credora, pelo que aconselhamos que tal seja feito e por quem se encontra creditado para isso.

Por exigências legais, os locais destinados a este tipo de actividade são geralmente afastados das grandes urbes, pela defesa dos direitos de cidadania, o que pode não ser mau atendendo a baixa de preços. No entanto, não havendo transportes públicos, face a situações emergentes, não vivendo no local, não havendo a disponibilidade de qualquer familiar para o efeito e na impossibilidade de pagar a terceiros, a carta de condução irá fazer-lhe muita falta, mais-valia que imediatamente deveria adquirir. Com a carta de condução na mão, ser-lhe-á mais fácil alcançar emprego nessa ou noutra actividade, quer venha a responder por ela ou nela venha a encontrar o seu salário. Entretanto continue a sua busca, saia de casa, informe-se e visite várias explorações dessa actividade, tome contacto com essa realidade e não se remeta exclusivamente à Internet, local preferencial para a burla e onde pouco ou nada transparece, na diferença que vai do virtual para o real.

À parte disto, importa que se sinta bem consigo própria, para evitar a sobrecarga e adquirir a disponibilidade físico-anímica inerente ao que pretende realizar, porque qualquer prestação de serviço exige uma imagem própria e de fácil identificação. Recupere e cuide da sua saúde, faça exercício físico e prepara-se para o esforço que a aguarda, porque lidar com animais, para além de gratificante, é uma tarefa que provoca grande desgaste. O tempo concorre contra si, a vida não pára e porque é farta em contrariedades, importa estar preparado para elas e levá-las de vencida.

Caderno de Ensino: XI. O "Troca" e o "Roda"

PARTICULARIDADES. Tanto o “troca” como o “roda” são automatismos direccionais e servem a condução nos seus três tipos: linear, dinâmico e nuclear. São evoluções tiradas a partir do “junto” e têm-no como ponto de partida ou de chegada. O seu ensino acontece primeiro à trela e por auxílio dos comandos verbais que especificam as acções.

O QUE É O “TROCA” E NO QUE CONSISTE. O “troca” é a mutação do lado de condução, operada pelo cão por ordem expressa do seu condutor (passagem do cão pela retaguarda do líder, do lado esquerdo para o direito ou vice-versa).
COMO SE INSTALA O “TROCA”. A instalação do “troca” começa na condução à trela e é executado em 3 momentos sucedâneos. No 1º momento o cão é convidado para a mutação do lado de condução pelo batimento da mão que indica o lado de entrada, soltando-se em simultâneo o comando verbal. No 2º momento, depois do adiantamento do condutor, a trela é passada curta e por detrás das suas costas, de uma mão a para a outra, ficando apenas segura pela mão que garante a mutação. No 3º momento a trela é distribuída pelas duas mãos do condutor, segundo o modo clássico de condução. Mais tarde, quando o “troca” se transformar em automatismo e o cão já o executar desatrelado, o simples batimento na perna de entrada garantirá a mutação de lado requerida.
PARA QUE SERVE O “TROCA”. O “troca” serve 5 objectivos: a mutação do lado de condução, a protecção do cão, a protecção dos que se cruzam com ele, o reforço da liderança e o refrear dos seus instintos. A mutação de lado é imprescindível à prática desportiva, porque possibilita o uso do cão a duas mãos, quer os obstáculos se situem à sua esquerda ou à sua direita. Serve de protecção para o cão nas situações em que importe protegê-lo da berma de uma estrada, desviá-lo de obstáculos inconvenientes ou dar-lhe o lado dos abrigos diante de intempéries (toldos e varandas). A mutação de lado garante a protecção de terceiros pela troca de alvos que impede a fixação, particularmente perante o cruzamento com indivíduos susceptíveis de accionar os seus mecanismos de agressividade. Reforça a liderança pela sujeição que garante a mudança de direcção e pode ser usado para travar ímpetos caninos quando tal não se justifique e se tornem impróprios ou abusivos, quando importar “trocar-lhe as voltas”, como subsídio de travamento ou modo para a cessação das acções.

O QUE É O “RODA”. O “roda é um automatismo direccional que serve para a inversão do sentido de marcha e para as mudanças de direcção, desnecessitando do contributo da mutação de lado, muito embora possa ser executado a partir das duas mãos de condução.
COMO SE ENSINA O “RODA”. Ainda que o “roda” à trela possa ser ensinado de duas diferentes maneiras, consoante o condutor o execute com o cão ou contra ele, sempre optámos por instalá-lo pela primeira opção, para evitarmos a coerção e o stress provocado pela evolução. No entanto, depois da sua assimilação e já com o cão em liberdade, sempre optamos pela maneira mais célere, a providenciada pela rotação do condutor contra o animal. Segundo os nossos procedimentos, o ensino do automatismo à trela acontece pela rotação binomial para o mesmo lado, havendo o cuidado de não esperar pelo cão e suceder à voz de “roda” o comando de “junto”.
UTILIDADE DO “RODA”. O “roda” é um garante da progressão alinhada e tal como o “troca” pode ser usado nas conduções, linear, dinâmica e nuclear. Na condução linear o gesto (indicado pela rotação da mão direita do condutor com os dedos abertos em leque), pode dispensar ou substituir o comando verbal, coisa impossível de se operar nos restantes tipos de condução, atendendo a velocidade funcional e à distância entre os membros do binómio. Qualquer mudança de direcção deve ser indicada pelo “roda”, quer se inverta a marcha ou se tome outra direcção. Este comando quando assimilado como código e transformado em automatismo, pode operar também a cessação das acções, dispensando assim o concurso de qualquer imobilização ou comando inibitório, o que é de todo desejável. O “roda” quando solicitado para a inversão de marcha e com o cão afastado do seu líder, deve acontecer prontamente e ser operado na maior celeridade possível, porque reproduz o “aqui” e ambos carecem de um retorno automático, sem perca de velocidade e executado a galope. A demora no cumprimento da ordem e a opção pelo retorno em marcha ou a passo, sempre espelha a precariedade do ensino, a ausência dos necessários vínculos afectivos binomiais ou a impropriedade de um cão, resultando esta de uma pedagogia descuidada ou desajustada.

Quem são aqueles? -É o pessoal da escola dos cães

Como já muitos notaram, na semana passado o blog não foi actualizado, facto relacionado com o aumento das sessões de treino semanais, graças ao decreto do governo ligado à visita papal. Nestes dois fins-de-semana andámos por todo o lado e esgueirámo-nos da chuva, trabalhámos em altitude e na orla marítima, executámos uma prova de patrulha com 10,2 km de extensão, tirámos partido de obstáculos artificiais e acabámos numa churrascada em casa de um aluno, tendo como pano de fundo a Serra de Sintra e ladeados pela Ribeira de Cheleiros. Diante das nossas incursões há sempre alguém que pergunta: “ quem são aqueles?” e prontamente outro responde: “ é o pessoal da escola dos cães!”

Participaram nos trabalhos do penúltimo fim-de-semana os seguintes binómios: Ana/Loki, Bruno/Pepe, Célia/Igor, Clara/Shara, Francisco/Íris, Isabel Silva/Luna, Jorge/Juvat, Luís Leal/Teka I, Rodrigo/Tarkan, Tiago/Sane, Teresa/Buster, Vítor Hugo/Yoshi e Zé Gabriel/Master. No fim-de-semana passado fizeram-se presentes os seguintes binómios: Alexandra/Abu, Ana/Loki, Bruno/Pepe, Célia/Igor, Francisco/Íris, Gonçalo/Rocky, Isabel Silva/Luna, Irina/Max, Joana/Flikke, João Moura/Bonnie, Joaquim/Maggie, Jorge/Juvat, Luís Leal/Teka I, Manuel/Mini, Octávio/Greg, Rodrigo/Tarkan, Tiago/Sane, Teresa/Buster e Vítor Hugo/Yoshi.

António Moura: Do suor para a glória

Faleceu neste dia 17 de Maio o nosso amigo António Moura, avô da Joana e pai do Sr. João Moura, ambos alunos desta escola. À família enlutada queremos manifestar os nossos pêsames, neste momento já aguardado e nem por isso menos sofrido. O falecido sofria há algum tempo de uma doença terminal e acabou os seus dias com algum sofrimento. Vai ser sepultado pela manhã do dia 19 no cemitério do Lourel (Sintra). O “homem das searas” partiu na esperança do reencontro com o seu Criador, segundo a fé inquebrantável que confessava ter em Cristo. Nasceu beirão e assim permaneceu, um agricultor esforçado e empreendedor, digno, sapiente e valente. Não voltará mais ao “Torrão” e aos campos da Idanha, lugares onde temperou a terra com o seu suor e habitou. Pela mão de Deus chegou à glória e por fim descansou da sua azáfama, foi para um lugar incomparavelmente melhor, onde não é preciso rasgar a terra, lançar a semente e ceifar. A sua ausência entre nós não encobrirá o seu exemplo de vida, porque permanecerá para sempre na memória daqueles que o conheceram. Adeus irmão, voltaremos a ver-nos.

sábado, 8 de maio de 2010

Georgi Charaka: O aguarelista de Belém

Quem for passear para Belém, mesmo defronte à fábrica dos pastéis e na esquina junto ao Mcdonal’s, é surpreendido com uma exposição de aguarelas ao ar livre, com o artista a trabalhar ao vivo, cujo motivo principal é Lisboa Antiga e os seus eléctricos, porque no entender do pintor é o que mais se vende (os preços são acessíveis). O artista é búlgaro, nasceu em 1958, já andou pela Europa fora e é coadjuvado na venda por um filho seu, fala um português inquestionável e pinta por memória, o que não deixa de ser também surpreendente. Conhece Lisboa e seus monumentos como poucos e durante alguns anos trabalhou na Rua Augusta. Aqui e ali vemos retratados os diversos miradouros da Capital, as suas igrejas e vielas, tendo como pano de fundo o Tejo. Chama-se Giorgi Charaka e brevemente a sua obra transitará para os postais ilustrados. Travámos conhecimento com ele por causa da sociabilização do Sane, o novo CPA do Tiago, que ao lado da galeria improvisada se acostumou ao boliço das gentes. A aguarela que acima reproduzimos, um original, foi-nos oferecida por este artista búlgaro, um homem acessível, simpático e de bem com a vida. Desejamos-lhe os maiores sucessos em terras lusas. Que bom seria que também pintasse cães!

O deus das entranhas, o rei na barriga, o que se leva desta vida e os cães

O saloio, o habitante dos arrabaldes que ao longo dos séculos tem sobrevivido nos arredores de Lisboa, preserva envergonhadamente a sua cultura e é em simultâneo um campeão da adaptação. O espaço que hoje ocupa, constantemente fustigado pela chegada de novas etnias bastante numerosas, tanto nacionais como estrangeiras, será daqui a vinte ou trinta anos ocupado por novas gentes e outros costumes, hoje seus vizinhos e em franca ascensão. Todavia os seus valores não desaparecerão, serão enxertados nos vindouros e sobreviverão como até aqui, devido à universalidade da sua cultura mestiça, fortemente enraizada nos confins da história e alicerçada em princípios neo-testamentários, ainda que adulterados e produto da convivência apressada entre cristãos, árabes e judeus pela fúria inquisitorial. Apesar de lhe terem roubado quase tudo, o saloio abraçou a língua mais universal de todas: a dos números, porque a matemática dispensa intérpretes, é exacta e induz ao pragmatismo. Não temos dúvidas ao olhar para o romance mais célebre de Cervantes e para as suas personagens centrais, a haver ali um saloio, ele seria certamente Sancho Pança. Será que não era mesmo? Que fado o levou a seguir o seu amo, ele que nunca frequentou a universidade de Alcalá de Henares e que ignorava os códices da cavalaria?

Quando foi inaugurado o Hotel de Turismo da Ericeira, dizia-se que a qualidade da sua cozinha era sofrível, exactamente a mesma da gastronomia regional ao tempo, austera, advinda das hortas, farta em aproveitamentos e adornada pelas ervas aromáticas que ondulavam pelos outeiros e cabeços. Com o andar dos tempos e a debanda das populações nortenhas rumo ao Sul e para o litoral, a situação alterou-se, a cultura do porco generalizou-se e a gastronomia tradicional sofreu alteração. Essa aculturação ultrapassou em muito a gastronomia, criou novas famílias e fundiu conceitos, godos e árabes descobriram que era mais o que os unia do que aquilo que os separava e criaram a síntese do saloio que chegou até nós: moçárabe de raiz e godo quanto baste. Contudo, a concepção divina velho testamentária não desapareceu, o Deus que habitava nas entranhas não foi desalojado e generalizou uma fé subjectiva, fortemente individualizada, arredada do préstimo eclesial e esporadicamente complementada por algumas doutrinas cristãs, mercê do arianismo intrínseco de uns e do particular histórico-religioso de outros. A crendice saloia, fortemente genética e cardíaca, aceita todos os profetas, respeita e procura adivinhos, teme toda a casta de demónios, concorre aos exorcistas, solicita os bons ofícios dos bruxos e não aboliu o culto à filha de Maomé, a senhora da luz, ainda que o faça inconscientemente em direcção a Maria, à Nossa Senhora e mãe de Jesus. E se o “grande andaluz” voltar, não apanhará o saloio desprevenido, porque ele abraça, absorve e adapta toda e qualquer doutrina, sobrevive em qualquer modelo social e emerge em qualquer regime (a República foi proclamada um dia antes em Loures), preservando ainda assim incómule a sua identidade própria, metafísica, paradoxal, conformada e profundamente fatalista. Para melhor conhecer a sua essência, convém também ler o episódio histórico relativo ao “Rei da Ericeira”.

Herdou de árabes e judeus a actividade mercantil, da fidalguia goda a barriga cheia e a borracheira, a curta passagem dos franceses reforçou essa tendência, a inveja levou-o à usurpação, o improviso ao aumento da riqueza e abraçou a ostentação, sem contudo abandonar a ancestral concepção de nómada e desconsiderar a brevidade da sua passagem por aqui. O saloio rico é avarento e desfila com o rei na barriga, o remediado é queixoso e invejoso e o pobre é dado a “filosofias”. Apesar das diferenças, diante do infortúnio ou perante estados de exaltação, subsiste entre eles uma máxima: “o que de melhor se leva desta vida é o comer, o beber, o borrar e o “coisar”, sentença de que fazem gáudio à guisa de conselho. E porque usámos a expressão “o rei na barriga”, também porque a Feira do Livro está a acontecer em Lisboa, importa realçar um dos contos do transmontano Alexandre Parafita, com o mesmo nome e editado pela Âmbar, já que a expressão vem de tempos longínquos e é original de um conto popular em vias de se extinguir da memória oral. Esta obra encontra-se catalogada como literatura infanto-juvenil e porque já a lemos, aconselhamos a sua compra aos pais extremosos, em prol dos benefícios oferecidos pela nossa riqueza patrimonial.

E como falar de cães é falar de homens, por força da coabitação forçada e face ao reflexo animal (vale a pena analisar a obra “Cão como nós”, da autoria de Manuel Alegre e publicada pela D.Quixote, onde o cão familiar vira poeta por força do antropomorfismo), importa ver como são tratados os cães entre os saloios, quais os da sua preferência e que uso lhe dão. Tanto saloios quanto alentejanos são matilheiros de eleição, quiçá pelo seu histórico étnico-social ligado ao servilismo e à sobrevivência. Longe vão os tempos da exclusividade dos perdigueiros, podengos e galgos, muito embora as matilhas de el-rei D. Carlos estejam agora a ser reinventadas, à imagem do que se passa em Espanha, para o lazer dos novos-ricos e segundo prazeres há muito antigos, já que na Estremadura proliferam matilhas para a caça grossa, equipadas com diferentes molossos e compostas por cães de toda a casta. Como já tratámos deste assunto e à face à inevitabilidade dos acidentes, remetemo-lo a uma simples questão: agora que acabámos com os cães de guerra, vamos abatê-los com fogo amigo?

Na região saloia perpetua-se uma verdade insofismável: quanto mais pobres são os indivíduos, maior é o número de cães que possuem. Esta incongruência, porventura ligada ao isolamento social a que as classes mais desfavorecidas se encontravam votadas, tem sido responsável pelo abandono e pela excessiva proliferação de cães, sendo fácil vê-los a vaguear pelas estradas ou estendidos mortalmente nas suas bermas. Apesar dos esforços de algumas câmaras, louváveis campanhas de esclarecimento e dos sucessivos apelos à adopção, os canis municipais continuam a funcionar como autênticos matadouros, com calendário pré-estabelecido para o dia semanal da matança. Infelizmente, as suas boxes raramente estão vazias e na época estival encontram-se superlotadas. Como o assunto tem barbas e perante a ineficácia das soluções encontradas, apraz-nos perguntar: não valeria a pena tratar dos indivíduos primeiro e reconciliá-los com a sociedade?

Antes de avaliarmos o cão nos diferentes substratos sociais saloios, porque o termo “saloio” tem sido mal compreendido, entendido como sinónimo de provinciano e porque nem todos os provincianos são saloios, urge explicar donde veio, quem é e onde vive. O termo é de origem árabe e resultou imediatamente da divisão social moura aquando da invasão peninsular e designava os habitantes fora de portas, os próprios dos arrabaldes, sujeitos a vários tipos de impostos e obrigações diante dos seus senhores. A sua actividade remetia-se quase em exclusivo à agricultura e a transumância. Com a reconquista cristã e a consequente conquista de Lisboa, essa gente passou a pagar ao rei de Portugal o mesmo que pagava aos reis mouros. O seu genocídio não aconteceu por conveniências ligadas ao povoamento do território e à sobrevivência do reino. Na sua origem o saloio é mouro e com o andar dos tempos foi assimilado, mesclou-se com os cristãos e tornou-se português, apesar de vãs restrições reiteradas e por fim abandonadas, coisa que aconteceu um pouco por todo o País (nuns lugares mais do que outros). Tem vivido ao longo dos séculos ao redor de Lisboa, nos concelhos que confinam com ela e desde aí vem garantindo o aprovisionamento da Capital. Saloio era todo aquele que vivia para além da cidade, para lá dos muros da muralha fernandina, tal qual habitante do deserto e entregue às lides do campo. Não lhe sobreviveu nenhum dialecto próprio, somente um linguajar cantado hoje em desuso. Não obstante, tanto na cidade como nos campos, porque a invasão bárbara antecedeu as hordas muçulmanas, gente doutras etnias já ali vivia, fruto da tolerância moura que os alcunhou de moçárabes. Nos finais do séc. XIX e na 1ª metade do séc. XX, os saloios viram-se a braços com a corrente do eugenismo, tornando-se motivo de chacota, alvo preferencial e gente a encobrir para alguns. Os concelhos de origem moura ainda conservam na sua heráldica uma ou duas luas. Actualmente os habitantes da região saloia são provenientes de outras áreas geográficas e de diferentes etnias, quer nacionais quer intercontinentais. Todavia e por estranho que pareça, os valores e a cultura saloios são assimilados por ali como o ar que se respira, lembrando o retorno do cavalo árabe ao berbere.

O saloio rico é-o pelo negócio, é geralmente pouco instruído, tende a mandar os filhos para a faculdade e paga a sua adaptação pelos serviços de outrem. Manda fazer habitações palacianas, fortifica-as e compra um ou dois cães para evitar a cobiça e o mau-olhado, não dispensa grande cuidado aos animais e paga para que mordam nas estrelas. Em virtude disso, o comércio de cães já ensinados tem vindo a aumentar. Apesar de não ser um consumista puro, porque alguns deles não esqueceram a casa onde nasceram e que tinha como soalho terra varrida, gosta de andar montado num automóvel topo de gama e pode adquirir um dispendioso cão importado, vulgarmente mal afamado e temido pela sua ferocidade, obsequiando em simultâneo a esposa com um cão miniatura, sedento de cuidados, exótico, irritante e mal disposto. Come na cozinha e vive geralmente num anexo, fazendo da habitação museu e pronta para revista. É naturalmente infiel e desconfiado, absorve outros valores e despreza os seus patrícios, não é benemérito e procura o reconhecimento público e o galarim. Paga contrafeito as despesas no veterinário, que acha exorbitantes e compra ração nas grandes superfícies. É um especicista inato, pode ser caçador e sujeita os cães à austeridade que lhe deu a fortuna. Os canis são geralmente exíguos, arredados e lembram coelheiras. Não interage com os animais, raramente procede à sua higiene diária, nunca tem tempo para a excursão canina e não quer ver os bichos dentro de casa. Vai de férias para as Caraíbas ou para a Serra Nevada e entrega os cães ao cuidado dos poucos empregados, a quem resiste aos aumentos salariais e de quem sempre reclama pela precariedade dos serviços. Tem geralmente uma horta e adora andar com uma cachola às costas, tem uma piscina, raramente sabe nadar e dificilmente lá mete os pés. Não queremos induzir ninguém em erro, porque são várias as excepções, mas este é o tipo mais fácil de se encontrar.

O saloio da classe média, que ainda vive do salário, acaba por comprar uma moradia, por reconstruir o casebre que o viu nascer ou aproveitar-se de um extenso terreno agrícola, mercê da ocasião, dos bons ofícios da banca e a pensar nos filhos. Tem geralmente um cão familiar, que pode ter raça ou não, que adora passear e ao qual dispensa o maior dos cuidados: o animal faz parte da família. É de média instrução, dedica-se ao exercício físico, concorre aos hotéis caninos e inscreve-se nas classes de adestramento. Procura nas rações a relação preço-qualidade, leva o cão regularmente ao veterinário, mantêm-no invariavelmente à solta e livre pela casa. Tende a comprar alguns livros sobre cães e busca conhecimentos complementares. É solidário em situações extremas, usufrui da casa e nela acaba por construir uma churrasqueira. Dependendo do trajecto de vida, actividade profissional e do local onde nasceu, pode também ter nas traseiras uma horta ou pomar. Sabe utilizar o computador e tem Internet. É liberal, normalmente fiel e detesta o peso dos compromissos, é vulnerável à novidade dos conceitos e anseia pela liberdade individual. Quando opta por um canil, procura opinião e visita alguns antes de dar início à sua construção. Faz jus ao conforto, dispensa maiores luxos e procura a ascensão. Come usualmente em casa, quando necessário concorre a refeições económicas ou a cantinas, indo esporadicamente aos restaurantes. Tem geralmente um carro de gama baixa, baixo consumo e a diesel (francês, italiano, alemão ou japonês), ou uma carrinha a gasóleo se tiver filhos. Compra brinquedos e guloseimas para o cão e revive momentos até então proibidos.

O saloio remediado (funcionário camarário, açougueiro de supermercado, operário da construção civil, empregado de comércio, contínuo escolar, auxiliar de limpeza, condutor de autocarro, etc.), vive em casa alugada ou naquela que sempre conheceu, é briguento e de fácil trato, rudimentar de ambições e pouco instruído, profundamente emocional e beberrão, passional e mulherengo, invejoso e maldizente, anticlerical, desconfiado e supersticioso. É solidário, adianta soluções para os problemas alheios e evita falar dos seus, vai à bola para maltratar o árbitro, é um adepto tribal e dado a rivalidades. Apesar de tudo é fácil de encarreirar, teme a autoridade e é submisso ao patrão. Tem como hobbies preferenciais a ida ao futebol, a columbofilia e a actividade cinegética. Geralmente opta por uma economia paralela, podendo ter um pequeno rebanho de ovelhas, uma oficina para os biscates, ser proprietário duma capoeira ou explorar uma pequena horta. Quando é caçador tem matilhas numerosas, mestiças e subnutridas, constituídas por cães de pequeno ou médio porte. Envereda por mezinhas, concorre somente às vacinas camarárias e apenas vai ao veterinário em último caso. Tem geralmente os cães presos à barraca e alimenta-os precariamente, com rações de gama baixa, restos de comida ou com tachadas de arroz trinca salpicadas com as aparas vindas do talho. É especicista sem dar conta, fanfarrão e invariavelmente os seus cães são para ele os melhores do mundo: “quem o ouvir não o leva preso!” Algumas das características indicadas para cada um dos três grupos podem transitar entre eles, por razões sócio-culturais, modo de ascensão e particular dos indivíduos. Para o saloio rico o de classe média peca por falta de iniciativa ou de ambição e o remediado pouco préstimo tem. Tanto o da classe média como o remediado vêem o rico como um ladrão, ainda que lhe dispensem os maiores salamaleques. O de médio rendimento é tido com esperto por parte do remediado e este é entendido pelo outro como elo mais fraco, um sobrevivente do período da pedra lascada. As relações entre os indivíduos do mesmo extracto social são de conveniência, distantes e cautelosas. A união automática face às calamidades não esconde a dificuldade colectiva saloia, porque são mais abertos para os de fora e vivem de costas voltadas para os vizinhos. Os jovens desta região não foram objecto de qualquer avaliação porque são iguais, tanto no modo de vida como nas preferências, aos de todo o mundo.

A simbiose germano-árabe condimentada aqui e ali com sangue hebraico transformou o saloio num sobrevivente, conciliando no passado aquilo que no presente parece não ter solução. Em poucos sítios do globo podemos ver nos vértices das casas tradicionais os símbolos islâmicos e hebraicos como adorno, sobre paredes caiadas de branco e rematadas a barras azuis, sem que ninguém aperte o passo ou cuspa de raiva pela afronta. A assimilação do saloio tornou possível o Portugal pluri-racial e pluricontinental, enquanto fase embrionária de sucesso e génese da globalização autêntica. E neste sentido todo o português tem um pouco de saloio, quer genética quer culturalmente, desde os confins da memória até aos horizontes doravante. Apesar de nas colónias não ter criado muitas faculdades, ele conseguiu estabelecer por todo o lado uma cultural popular, oriunda de valores ancestrais e alicerçada na novidade das famílias. A cultura saloia durará tanto quanto o mundo, porque espelha a humanidade e procura a coabitação de todos os povos, para além das diferenças e na senda do trajecto comum. Neste extremo ocidental da Europa Ismail reencontrou Isaac, uniram esforços e partiram com outros à descoberta.